Tombamento e os institutos do direito urbanístico

AutorMaria Coeli Simões Pires
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Pontifícia. Universidade Católica de Minas Gerais
Páginas573-607
Capítulo 13
O TOMBAMENTO E OS INSTITUTOS
DO DIREITO URBANÍSTICO
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Durante muito tempo, o tombamento, quase exclusivo mecanismo
de proteção do patrimônio c ultural, foi colocado como um imped itivo à evo-
lução da cidade e como fator de engessamento das soluções urbanísticas,
com ressalva de progra mas pontuais.
Mais recentemente, a compreensão da importância do diálogo inter-
geracional e da g ravidade da tensão provocada pelas rupt uras da Pós-Moder-
nidade e pela necessidade de proteção dos referentes de identidade coletiva,
no contraponto globalização e localismo, pauta a temática do patr imônio
cultura l, na agenda do Direito Urbanístico. Assim é que se intenta uma (re)
signif icação do instituto do tombamento como inst rumento de proteção pa-
trimonia l, a um só tempo, capaz de resguard ar a integridade dos bens cu ltu-
rais que lhe const ituam o objeto e de projetá-los como referentes identitários
no contexto da cidade, em contraposição às culturas homogeinizadas, e,
também, de propulsa r o desenvolvimento equilibrado do espaço ur bano em
que se inserem e das f unções sociais da cidade.
Vê-se esforço construtivo de novas bases de compreen são das funções da
cidade em suas múltipla s dimensões: física, socia l, simbólica, econômica, estéti-
ca, urbanística, entre outras. Cr ia-se, sobretudo, espaço de interlocução entre
proteção de referentes culturais da urbe e as funções sociais da cidade.1,2,3 Pa-
trícia Reis da Silva, mostrando essa nova tendência, lembra que “a função do
1 PIRES, Mar ia Coeli Simões. Cidade e Cu ltura: recíprocas I nterferências e suas r e-
presentações. Revi sta da Faculd ade de Direito da Unive rsidade Fede ral de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 2 001: (189-217), n. 40.
2 CARVALHO, Ivan Lira de. Esté tica Urbana e Patrimônio Cu ltural: Preocupações do
Direito Ambie ntal. Lex: Ju risprudê ncia do Supremo Tribuna l Federal. Bras ília,
dez. 2003: (5-21), v. 25; 300.
3 CARTELLS , Alícia Norma Gonç alez de; NARDI, Let ícia (org.). Patrimônio Cultural
e Cidade Cont emporânea. Floria nópolis: Editora U FSC, 2012.
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tombamento não é cercear (o desenvolvimento da cidade), mas servir de r eferen-
cial para i númeras possibilidades de in strumentos associados à preser vação”.4
Por isso mesmo, ganha ênfase, no bojo da ampla política urbana, a
associação do tombamento ao planejamento territorial e à reg ulação urba-
nística, i nvocando tipologias de proteção disti ntas, na busca da superação de
práticas disc ursivas incompatíveis. Isso, em substit uição à solução de utiliza-
ção isolada do tombamento, em uma vertente, e de uma política urbana
dissociad a dos valores culturais da c idade, em outra.
Edésio Fernandes, nesse s entido, enfati za a importância de se art icular
a atuação dos órgãos de Patrimônio com a do município no campo do plane-
jamento territorial, da gestão e regu lação urbana, mormente em contexto de
pressões decorrentes dos processos urbanizatórios desordenados. Segundo o
autor, os municípios podem dotar o sistema de adequad as normas urbaní sticas
de uso, ocupação, parcelamento, constr ução e posturas, além de assegurar a
criação de áreas de diretri zes especiais e zonas de conservação, com reflexos
positivos na política de proteção ao patr imônio natural e cult ural.5
Essa articulação, à sua vez, responde à advertência de Hely Lopes
Meirelles, seg undo a qual “o urbanismo não pode despreza r o ambiente na-
tural, nem re legar a tradição”.6
Na mesma toada, assiste ra zão a José Afonso da Silva7 quando concei-
tua como de interesse urba nístico especial as áreas nas quais se verifica a
existência de bens imóveis sujeitos a regime específico de tombamento, as
áreas de preser vação histórica, cultura l e paisagística. Os ben s que integram
as referidas ár eas e que são de natureza imobiliá ria denominam-se, segu ndo
o autor, bens culturai s ambientais; a área em que se situam, meio ambiente
cultura l; e o conjunto de bens e área, patrimônio cu ltural ambiental, patri-
mônio cultur al urbanístico ou aind a patri mônio ambiental u rbano.
Toshio Mukai8 também enfati za o caráter urbanístico do i nstituto do
4 SILVA, Patrícia Reis da. Os sig nificados do tombamento e m Ouro Preto e seu pa-
pel como elo entre polít ica de preservação e a gestão urba na. In: FERNA NDES,
Edésio; ALFONSIN, Bet ânia (coord.). Revisit ando o institut o do tombament o. Belo
Horizonte: Fóru m, 2010: (397-415), p 413. ISBN: 978-85-7700-388-4.
5 FERNA NDES, Edésio. Do tombamento ao pl anejamento territor ial e à gestão urba-
na. In: FERN ANDES, Edésio; ALFONSI N, Betânia (coord.). Revisita ndo o instituto do
tombamento. Belo Horizonte: Fór um, 2010: (23-35), p.34. ISBN: 978-85-7700-388-4.
6 MEIRELLES, He ly Lopes. O direito de constru ir. São Paulo: Revist a dos Tribuna is,
1965. p. 133.
7 SILVA, José Afonso da. O direito urba nístico brasile iro. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 1981. pp. 481-2.
8 MUKAI, Toshio. Lim itações urbanística s e patrimôn io cultura l. Revista de Admi-
nistração Municipal. R io de Janeiro, 27(154): 53-62, jan./mar. 1980.
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tombamento, alin hando, ao lado das tradicionais espécies de limitação ad-
ministrativa, como as de higiene e de segurança, as destinadas à proteção
estética, paisag ística e monumental da cidade, clas sificando-as como limita-
ções urbanísticas. E, buscando f undamento da inclusão dessa espécie entre
as limitações u rbanísticas, regis tra posição de Hely Lopes Meirelles:
“A proteção paisagística e monumental enquadra-se perfeita-
mente nas limitações urbanísticas de defesa estética da c idade e
suas adjacências, como elemento de recreação espi ritual e fator
de educação artíst ica das populações”.
Dissentindo des sa posição, a autora deste traba lho defendeu, no capítulo
relativo à natureza do tomba mento, o caráter de servidão admi nistrativa do ins -
tituto, sem o excluir, todav ia, na conformação imobiliári a, da seara urbaníst ica.
Não há negar a imbricação do instituto do tombamento na tipologia
imobiliária9 com o Dir eito Urbanístico: recíprocas são as implic ações entre o
referido inst ituto e os que se conformam nessa seara jur ídica ou em campos
correlatos, daí por que o estudo do tombamento relativamente a imóveis
não pode ser feito em divórcio com esse ramo do Di reito.
Do ponto de vista fenomenológico, observa-se que, no Brasil, a ex-
pansão das cidades tem-se dado por rápido processo de urba nização, desor-
denada e desumana, com reflexos negativos na geografia social e urbana,
interferi ndo nos padrões de habitação, educação, saúde, qualidade de vida, e,
sobremaneira, na f isionomia das cidades, com prejuí zo sensível para o patri-
mônio cu ltural da comun idade.
Somente a adequada regulação e a aplicação integrada de pla nos e
outros institutos urbaníst icos que (re)conciliem o desenvolvimento e os va-
lores culturais podem dar solução aos problemas, seja mediante projetos de
renovação ou reabilitação urbana, seja pela inserção de bens cultura is no
contexto da vida das comu nidades, ou, ainda, por atribuição aos monumen-
tos de funções novas e di nâmicas na coletividade, inser indo-os nos seus pro-
cessos de vida e de resgate da memória. Este é um desaf io que, a partir da
redemocratização, ganha nova dimensão sob inf luência sobretudo dos no-
vos paradigma s da propriedade urbana e da cidade.
Nesse novo cenário, amplo é o campo da at uação urbanística, em f unção
da qual se colocam vários marcos legais, desde a Constituição, passando pelo
9 Sobre o tombamento n a tipologia imobil iária, colham- se os suplementos de DIAS,
Maria Tereza Fonseca; PAI VA, Carlos Magno de Sou za (coord.). Direito e Proteção
do Patrimônio Cultural Imóvel. Belo Horizont e: Fórum, 2010.
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