Evolução da normatividade infraconstitucional da proteção ao patrimônio cultural no direito brasileiro com ênfase no instituto do tombamento

AutorMaria Coeli Simões Pires
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Pontifícia. Universidade Católica de Minas Gerais
Páginas191-226
Capítulo 5
Evolução da normatividade infraconstitucional
da proteção ao patrimônio... cultural no direito
brasileiro com ênfase no instituto
do tombamento
1. LEGISLAÇÃO FEDERAL
Múltiplas são as formas de pr oteção ao patrimônio cultur al, incluindo
aquelas de caráter ex v i legis, tais as que di spõem sobre a preservação de jazi-
das, de áreas de interesse cultural e ambiental, as que comunicam direta-
mente um dado regime de t ratamento em razão de uma referênc ia temporal
ou da natureza do bem, ent re outras, e as que demandam a atu ação adminis-
trativa do Poder Público no sentido de t rasladar, do plano normativo para o
plano concreto, a genérica imposição de proteção, como o tombamento,
cuja análi se constitui o objeto central da pesqui sa.
Buscar-se-á, neste capít ulo, registrar, a título de referência legislativa
infraconstitucional, os documentos que compuseram a lin ha de tempo da
normatização da proteção ao patrimônio cultural no Brasil, ainda que cor-
respondentes a simples normas de efeitos concretos, com destaque para
aqueles que assumiram papel estrut ural no sistema protecionista, apontan-
do-se possívei s alterações ou revogações.
Naquele plano normativo, deve ser registrado, com precedência, o
Decreto n. 22.928, de 12 de julho de 1933, do Presidente Getúlio Vargas,
que atribuiu à cidade de Ou ro Preto o título de monumento nacional; embo -
ra de efeitos concretos, o decreto coloca-se como primei ra referência da nor-
matividade inter na tendo em vista a construção de u m projeto de identidade
do Estado-Nação.
A discipli na sistemática da preservação do patr imônio cultura l foi inau-
gurada pela Lei Federal n. 378, de 13 de janeiro de 1937, que deu nova orga-
nização ao Mi nistério da Educação e Saúde Pública e cr iou o Serviço do Patri-
mônio Histórico e Ar tístico Nacional, com a fin alidade de promover, em todo
o País e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriqueci-
mento e o conhecimento do patri mônio histórico e artíst ico nacional.
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Da proteção ao patrimônio cultural
Na sequência, superado o propósito imed iato de organicidade e inst itu-
cionalização, a matéria foi tratada, em toda a sua extensão, pelo Decreto-Lei
n. 25, de 30 de novembro de 1937, marco legal que apropriou o conteúdo do
projeto elaborado por Rodrigo de Melo Fra nco, à sua vez, inspirado no projeto
de Mário de And rade, cuja latitude fora reduzida e reconformad a naquela ver-
são conciliadora. Aprovada na Câ mara dos Deputados, a matéria tram itava no
Congresso Nacional quando da dissolução deste pelo Golpe de 37. Com tal
medida, o projeto foi então adaptado e convertido em Decreto -Lei.
Com trinta ar tigos, algun s dos quais revogados, o mencionado Decre-
to-Lei define a organização da proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional, sendo esta a sua e strutura básica:
Capítulo I – Do Patri mônio Hi stórico e Artístico Nacional
Capítulo II – Do Tombamento
Capítulo III – Dos Efeitos do Tombamento
Capítulo IV – Do Dir eito de Preferência (Revogado)
Capítulo V – Disposições G erais.
O referido Decreto-Lei, conqua nto seja a principal referência norma-
tiva infraconstitucional no Brasil no campo da preservação do patrimônio
cultura l, não esgota a disciplina legislativa nesse campo. Ao contrário, cui-
dando dessa proteção, emparelha-se, ao longo do tempo, com uma série de
normas esparsas vertidas à temática específica ou de outros sítios conver-
gentes, e, mais recentemente, com as contidas no Estatuto da Cidade, que
amplif icam a tutela da cultur a na sua expressão patrimoni al. Comportando,
também, proteção a certos bens do patrimônio natural, revela, neste parti-
cular, caráter complementar a um complexo e rico arcabouço normativo
que compõe o sistema próprio de proteção à natureza, sob título do meio
ambiente. O referido marco lega l constitui-se em verdadeira âncora d a polí-
tica de proteção ao patrimôn io, balizando, não sem embates jurídicos, a atu-
ação estatal: em uma pr imeira fase, de salvamento de edif icações civis e re-
ligiosas e de pres ervação de acervos; em fase intermediá ria, de regulação da s
pressões da industrialização e urbanização, tendo nele um contraponto
como ordem limitadora da s relações, tendo em vista especialmente a prote-
ção dos conjuntos urbanos tombados e as ditas cidades históricas; e, na me-
dida em que as sina lizações inter nacionais e a dinâmica interna mostram a
necessidade de (re) semantização do patri mônio sob a pers pectiva dos direi-
tos cultur ais no bojo dos direitos humanos, a atuação estata l é desafiada, na
linha de efet ividade desses direitos, a uma ar ticulação permanente dos múl-
tiplos instrumentos de searas convergentes, inaugurando-se nova fase,
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Evolução da normatividade infraconstitucional da proteção ao patrimônio...
sujeita a complexos signif icantes, incluídos os decorrentes da concepção de-
mocrática de Estado e de Di reito. O tombamento passou a transitar em ou-
tras pautas, espec ialmente concorrendo com instrumentos do Di reito Urba-
nístico, nas agend as de sustentabilidade e de qua lidade das cidades, em torno
de propósitos de interação das d iversas dimensões fu ncionais e materiais do
urbano com a cidade simból ica dos referentes cultura is. Eis por que o marco
normativo em comento passou a ser reinterpretado na sua conexão com os
mais diversos norm ativos temáticos, com ênfase no Direito Urbaníst ico.
José Afonso da Silva,1 ana lisando o referido Decreto-Lei sob o enfoque
das relações com o Direito Urban ístico, recomendava a sua revisão com o ob-
jetivo de promover adequações aos novos conceitos de preservação e revitali-
zação do patrimônio cultural u rbanístico, reconhecendo que a tutela jurídica
dos bens cultu rais ambientais, apesar de ra zoavelmente desenvolvida, encon-
trava-se fund ada em legislação antiga e conceitual mente ultrapassada.
José Afonso da Silva2criticava ainda o f ato de que as leis subsequentes se
limitaram a adotar as normas do Decreto-Lei n. 25/37, sem levar em conta as
pesquisas doutr inárias e técn icas mais modernas, notada mente na linha tra nsiti-
va para o Direito Urban ístico, que delineiam conceitos evoluídos sobre o tema.
Em linha d iversa, Sônia Rabello ressalta que o ma rco legal do tomba-
mento, constituído pelo Decreto – Le i 25/1937, atravessa o tempo, mantendo
sua atualidade, e afirma que ele se encontra “vigente até os dias de hoje,
certamente em fu nção da excelência do seu texto”, considera ndo-o, por sua
construção normat iva, “quase perfeito”.3
De fato, o referido Decreto-lei mantém-se como uma referência in-
contestável na discipli na da proteção ao patrimônio, tendo sido, em sua es-
sência, recepcionado pela Const ituição de 1988. É certo, também, que sob a
nova ordem constitucional, o d iscurso de aplicação das normas sobre a pro-
teção do patrimônio tem busc ado explorar a sua plasticidade, res semantizan-
do conceitos e relendo o texto normativo por lentes atualizadas. Não há ne-
gar, contudo, a recorrência de di ficuldades e conflitos apontando a
necessidade de adequações e reformulações, especialmente, no tocante à
1 SILVA, José Afonso da. O direito urbaní stico brasileiro. São Pau lo: Revista dos Tribu-
nais, 1981. p. 510.
2 SILVA, José Afonso da. O direito urbaní stico brasileiro. São Pau lo: Revista dos Tribu-
nais, 1981. p. 510.
3 RABELLO, Sônia. Tombamento e Leg islação urban ística: competência e gestão.
In: FERNA NDES, Edésio; ALFONSIN, Betân ia (coord.). Revisi tando o instituto do
tombamento. Belo Horizonte: Fór um, 2010. pp. 37-49.
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