O tratamento constitucional da proteção do patrimônio cultural no direito estrangeiro
Autor | Maria Coeli Simões Pires |
Ocupação do Autor | Bacharel em Direito pela Pontifícia. Universidade Católica de Minas Gerais |
Páginas | 89-136 |
Capítulo 2
O tratamento constitucional da proteção
do patrimônio cultural... no direito estrangeiro
Em todo o planeta, cada vez mai s, cresce a consciência de que é neces-
sário proteger o acervo cu ltural de que disp õe a humanidade. Nesse sentido,
a atuação de organismos internacionais e as iniciativas de inúmeros gover-
nos, de há muito, têm estimulado a evolução de uma menta lidade conserva-
cionista e a adoção de prát icas coerentes com tal intento.
Entretanto, há que se reconhecer a al ienação em que se encontra
boa parte dos povos, mais preocupados com a sobrevivência de que com
valores espirit uais, cuja sustentação pressupõe educação e superação das
necessidades básicas da população. Há, ainda, fatores de domi nação que
inibem espec ialmente os países colonizados de promoverem a apropr iação
de sua cultura. A propósito, é interessante notar que, justamente nas na-
ções mais pobres e menos atentas às questões culturais, costuma-se disci-
plinar const itucionalmente e por meio da legislação ordi nária, pormenori-
zadamente, a proteção ao patrimôn io histórico e artístico. Outrossim,
nessas nações, atribui-se ao Estado o papel primacial, como que reconhe-
cendo a inépcia da socied ade para exercer a tutela sobre aquele bem jurídi-
co, e reforçando o encobrimento e a dominação.
De outra parte, em que pese à d iversidade de tratamento legal e consti-
tucional dado à matéria, é forçoso acolher a regra gera l de que, nos países
“culturalmente avançados”, a ação da coletividade é o principal vetor da pre-
servação do patrimôn io histórico e art ístico. Nesses países, verifica-se plena
eficácia do apar ato normativo, a parti r da atuação conjunta da Admin istração
e da sociedade na promoção do patri mônio, na fiscalização do cumpr imento
das normas protetivas e na provocação dos órgãos de controle, incluída a de
vigorosa e pronta man ifestação do Judiciário, ante a ocorrênc ia de infrações.
Vistos superficialmente alg uns aspectos de Sociologia Jurídica, de
relevância para a compreensão da diversidade de trata mento constitucio-
nal dispensado à matéria, passa-se ao est udo do tema sob o prisma do di-
reito comparado, notadamente de caráter pos itivo.
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Da proteção ao patrimônio cultural
Os esforços envidados com vista s a uma análise abrang ente e profun-
da esbarram em obstáculos quase ir removíveis, por limitações manifestas
de espaço e de tempo. Ademais, a escassez de recursos bibliográficos e a di-
ficuldade de acesso aos complexos sistemas normativos de alg uns Estados,
sobretudo os organi zados em Federação – nos quais normalmente a preser-
vação cultura l é desdobrada em diversos n íveis –, aliadas à pouca ênfase
constituciona l e legal no tratamento d a matéria em países tradiciona lmente
exemplares nesse campo, just ificam a ausência de un iformidade do cotejo.
Quanto à escolha da leg islação a ser comparada, tem-se que ela não se
deu de modo aleatório; ao contrário, a ela presid iram critérios lógicos condu-
centes aos objetivos propostos neste capítulo. A seleção norteou-se, não ta n-
to pelo articu lado formal dos preceitos contidos em cada Constituição, mas
pela relação do ordenamento com a estr utura histórica na qual se insere e
com o sistema político e econômico que o conforma.
Assim, busca-se enfocar ligei ramente os sistemas de proteção dos pa-
íses vizi nhos, latino-americanos, com ênfase para os inser idos em realidade
socioeconômica simi lar à do Brasil, ou para alg uns patrimônios emblemáti-
cos como os do Peru e de Cuba; o da Metrópole, Portuga l, em que podem
ser detectadas as ra ízes do sistema pátrio de proteção; e, fin almente, as dife-
renças de tratame nto entre os países eur opeus de destaque.
O material aqui sistematizado não pode fornecer base documental a
uma anál ise teórica de direito comparado, posto que a opção se deu por um
critério empír ico, por via do qual se buscam elementos comuns mais ev iden-
tes para o agr upamento.
Não se optou, também, pela tri lha usual a que se faz referência em
política, economia e sociologia: a que d isting ue três grandes zonas – a dos
países indust rializados do Ocidente, a dos paí ses industrializ ados do Leste e
a dos países não indust rializados do Terceiro Mundo; nem se fez abordagem
com foco nas especif icidades da cultura nos polos dos processos de descolo-
nização – antigos colonizadores e descolonizados –, que devem pautar ou-
tros estudos.
1. O TRATAMENTO DA PROTEÇÃO PATRIMONIAL EM ALGUNS PAÍSES
LATINO-AMERICANOS
1.1. Argentina
A Constituição A rgentina em vigor é a de 1853, com as suas sucessivas
emendas.
Restabelecida, em 27 de abril de 1956, por ato do Governo originado
do golpe de Estado de 16 de setembro de 1955, apresenta a seguinte proclama-
ção do poder revolucionário:
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O tratamento constitucional da proteção do patrimônio cultural...
“Por ello, el gobierno provisional de l a Nación Argentina, en ejercicio
de sus poderes re volucionarios, proclama con f uerza obligatoria:
Artículo 1º – Declarar vige nte la Constitución Nac ional sancionad a em
1853, con las reforma s de 1860, 1866, 1898 y exclusión de la de 1949, sin
perjuicio de los actos y procedimientos que hubiesen quedado definiti-
vamente concluídos con ant erioridad al 16 de septie mbro de 1955”.
A Constituição que vigorava até então era a de 1949, sob cuja égide a
cultura era concebida como o fim fundamental que devia o Estado perse-
guir para a civilização, compreendendo esta o progresso material e moral.
Nesse sentido, naquela ordem, consideravam-se patrimônio mínimo do ci-
dadão e base da civi lização: a inst rução, o cultivo e o desenvolvimento da
inteligência, a educ ação dos indivíduos, das classes e dos p ovos, os sentimen-
tos nacionalist as e as virtudes pessoai s, familiares e cív icas.
A Carta de 1949 regional izava o território nacional em á reas universitá-
rias que deviam cong regar instituições re sponsáveis pelo estudo da literatura
e da história do folclore de sua zona de inf luência cultural, além de outras
discipli nas ligadas ao incremento das at ividades econômicas regionais.
Essas univers idades, até hoje, oferecem cursos obrig atórios e comuns
para a formação dos estudantes, com o propósito de despert á-los para a rea-
lidade espir itual, econômica, social, política , histórica e cultura l da Repúbli-
ca Argentin a, enfatizando, assim , os conhecimentos fundamenta is ao desen-
volvimento integ rado do cidadão.
Além da preocupação com os valores i materiais da cultura, a Con s-
tituição revogada denotava zelo do Const ituinte para com o patrimônio
físico da cultura nacional, registrando dispositivo semelhante aos que fi-
guram na h istória constitucional bra sileira, a partir de 1934, e, de resto, na
maioria das Constituições.
Nesse sentido, vê-se, no Capítulo III, 37, IV, parágrafo 7º, da Consti-
tuição Nacional da República Argentina, de 11 de março de 1949, norma
assim enunciada:
“Las rique zas artísticas e histór icas, asi como el paisage natural cual-
quiera que sea su propietario, forman parte del patrimônio c ultural de
la Nación y estarán bajo la tutela del Estado, que puede decretar l as
expropiac iones necesarias para su defensa y prohibir la exportación o
enabanac ión de los terosos artísticos.
El Estado organizará um regi stro de la riqueza artíst ica e histórica que
assegure su cust odia y atienda a su conser vación”.
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