Regime jurídico do tombamento

AutorMaria Coeli Simões Pires
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Pontifícia. Universidade Católica de Minas Gerais
Páginas339-374
Capítulo 8
REGIME JURÍDICO DO TOMBAMENTO
O tombamento, instituto de lastro constitucional destinado à prote-
ção do patrimônio cu ltural material , concretiza-se mediante ato adm inistra-
tivo resultante de pro cedimento, cujos pressupostos, encadeamento e alcan-
ce são regidos por uma tra ma normativa que sustenta sua validade.
O tombamento, como ato administ rativo, promana de normas gerai s,
mas concretiza-se med iante procedimento individual izador, assumindo na-
tureza e ca racterísticas próprias. I mporta definir esse s traços, o que só pode
ser realizado a partir do estudo do fim que lhe é imanente e da disciplina a
que se submete, notadamente o marco legal constituído pelo Decreto-lei n.
25/37, que, conquanto formulado em ambiente político adverso, ao influxo
de um paradig ma de Estado já ultrapassado, traça su ficientemente o regime
jurídico do tombamento e todo o iter procedimental de sua aplicação. O re-
ferido documento normativo, rel ido à luz dos comandos e princípios estabe-
lecidos na Constituição de 1988, sustenta a validade do tombamento e da
correspondente intervenção estatal, capaz de restring ir direitos individuais
enquistados pelo intere sse social de preservação.
A anális e do marco legal específico e da s normas correlatas permiti rá
o delineamento do reg ime jurídico aplicável ao tombamento, bem assim o
destrinça mento dos traços desse regime. Para enumerá-los necessá rio se faz
o exame ontológico e teleológico do tombamento, identificando o locus ou
status que ocupa no mundo jur ídico.
Pedro Nunes apresenta o seg uinte significado da expressão Instituto
Jurídico: “Conjunto de normas reguladoras ou discipl inadoras de uma cria-
ção legal, com caracter ísticas próprias, constituindo uma entidade autôno-
ma de direito, que atende a interes ses de ordem privada, ou pública: a falên-
cia, o usuf ruto, a tutela, o pátrio poder, a prescrição, a legitimaç ão”.1
1 NUNES, Ped ro. Dicionário de Tecnolog ia Jurídica. 13 ed. Rio de Jane iro: Renovar,
1999. p. 635.
Da_Protecao_ao_Patrimonio_Cultural.indd 339 27/11/2021 22:21:00
340
Da proteção ao patrimônio cultural
A priori , contudo, deve-se tomar como premissa a ideia de que o tom-
bamento não constitui f igura juríd ica isolada, ou seja, de conformação intei-
ramente autônoma, justif icando-se sua ex istência ao abrigo de uma ordem
jurídica complexa, na qual há interação entre categor ias e institutos jurídi-
cos, num sentido mais amplo, na const rução de universalidades, e, a inda, de
um corpo normativo espec ializado, num plano mais rest rito, que propugna
por identidade e autonomia. Por outro lado, não é um instrumento exclusi-
vo de proteção do patrimônio; a ordem juríd ica apresenta outros institutos
alternativos ou complementares, que podem ser i mplementados por meio
de ato correspondente, além de fórmul as protetivas diretas, isto é, ex v i legis,
que comunicam aos bens a proteção de form a automática.
Logo, o tombamento encerra pecul iaridades, mas apresenta, outros-
sim, caracter es que o aproximam de instru mentos congêneres, notadamen-
te de outros previstos const itucionalmente para a proteção e salvag uarda do
patrimônio cu ltural. Peça de uma eng renagem complexa, o instituto desem-
penha papel sing ular, encontrando-se relativamente ajustado ao escopo
maior que suas normas de reg ência perseguem e encadeiam. Nesse sentido,
pode-se afirmar ser a crítica recorrente que se opõe ao tombamento mais
relacionada com a sua inadequada aplicação de que com a sua construção
enquanto i nstituto.
Explicitada a cond ição do tombamento como uma faceta destacada da
pedra ang ular erigida, seg undo a Constituição, para a ssegurar a preser vação
do patrimônio cu ltural e natural da Nação, retoma-se o conceito do in stitu-
to, prosseguindo-se com as considerações em torno de sua nat ureza, tudo
em afir mações alinhavadas precá ria e provisoriamente. Apresent a-se, então,
o tombamento, a princípio, como instituto constitucional e, no plano con-
creto, como ato legalmente embasado, cuja fi nalidade é assegur ar o respeito
ao patrimônio cu ltural e natural do Pa ís.
A partir dessa formulação, ainda que incompleta, é possível alin har
indagações que, respond idas, levarão à deli mitação do instituto, bem como
do ato por meio do qual se revela.
A questão a ser inicia lmente colocada concerne ao plano relacional
metajurídico, que é alvo de incidência das normas disciplinadoras do
tombamento. Ora, conforme já assinalado, a disciplina do tombamento
insere-se num complexo normativo que está voltado como um todo pa ra
a proteção da cultu ra e da natureza. Quem detém a titu laridade dos acer-
vos culturais? Obviamente, não o indivíduo. Seria o Estado? A memória
de um país – bem como seu patri mônio natural – não é fru ível, de forma
Da_Protecao_ao_Patrimonio_Cultural.indd 340 27/11/2021 22:21:00
341
REGIME JURÍDICO DO TOMBAMENTO
exclusiva, por indiv íduo algum. A todas as pessoas aproveita conser var o
patrimônio cu ltural e natural, a inda que algumas o desconheçam. Num
caso, tem-se o elo com o repositório da identidade coletiva, aquilo que
faz de um povo uma Nação, o “algo em comum”; noutro, a garantia do
futuro da coletividade, do habitat indispensável ao ciclo biológico, cujo
prosseguimento signif ica a sobrevivência da espécie.
Considerando, pois, que hauri r os benefícios gerados pela natureza e
pela conservação do passado é apa nágio das pessoas em geral , fica claro que,
num primeiro pla no, um dos polos das relações contempladas pela norma de
proteção, principalmente no plano constitucional, é a coletividade, cuja ex-
pressão mais simpl ista é revelada pelo próprio Estado, sem prejuízo de ou-
tras di mensões organizatórias e do foco interg eracional.
Resta desvendar o sujeito passivo das relações disciplinadas pela
Constituição Federa l. Identifica-se, de imediato, o Estado, nessa teór ica rela-
ção. Além da relação estabelecida nesse nível, verif icam-se outras, que sur-
gem como desdobramento da norma fu ndamental. E continua a indagação:
a quem se destinam as normas de proteção da cultura e da natureza? Sob o
enfoque das li mitações, sem dúvida, àqueles que possam lesar o patr imônio,
por si mesmos ou mediante conduta de seus agentes; em se t ratando de fina-
lidade, e sob o aspecto da proteção propriamente dita, a todos aqueles que
podem se beneficia r dos reflexos dessa proteção. Com isso, pode-se afi rmar
que o sujeito da obrigação de respeita r os bens protegidos por norma consti-
tucional e pelos i nstrumentos jurídicos decorr entes é tanto a pessoa natural,
o indivíduo, quanto a pessoa ju rídica, seja esta de direito pr ivado ou de direi-
to público, entendidos, no polo passivo da relação, tanto os que têm a pro-
priedade do bem, como os que a ele possam vi ncular-se de alg uma forma. A
relação que se estabelece na efetivação do tombamento, por meio do ato
administrativo específico, tem como sujeito ativo o Estado e como sujeito
passivo, o proprietário do bem, os qua is se relacionam em função do objeto,
que é o próprio bem. Observe-se, todav ia, que, em determinadas ci rcunstân-
cias, já efetuado o ato de tombamento, a polar ização entre Estado e proprie-
tário se inverte, como, por exemplo, quando o proprietário passa a exigir,
em certas hipótese s, a conservação da coisa pelo Estado, demonstrada a im-
possibilidade de e le mesmo fazê-lo.
Das considerações acima adu zidas, conclui-se que as relações que se
estabelecem em função do tomba mento são de direito público e, ma is espe-
cificamente, de direito administrativo (relação de administração), porquan-
to se processam em torno de i nteresses sociais que são resgu ardados por atos
da Admin istração, cuja disciplina é estabelecida no âmbito daquele ramo.
Da_Protecao_ao_Patrimonio_Cultural.indd 341 27/11/2021 22:21:00

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT