Estado Federal

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas295-349
SUMÁRIO
1. Introdução – 2. A federação no Brasil – Evolução – 3. Estrutura da federação – As descen-
tralizações da federação brasileira – 4. Repartição de competências – 5. União – Natureza
jurídica – 6. Estados federados – Autonomia – 7. Municípios – Po sição na federação – 8.
Distrito Federal – natureza – 9. Territórios – 10. Intervenção federal – 11. Intervenção nos
Municípios.
1. INTRODUÇÃO
Ao tratarmos das formas de Estado e dos princípios fundamentais da Constituição,
examinamos a noção de Estado Federal, identicando-lhe os traços básicos, e, sucintamente,
a evolução do federalismo no Brasil (cf. cap. 2 do vol. 1 e deste volume).
Apesar disso, insistiremos na análise do tema, a m de melhor compreendermos a
estrutura federal brasileira.
O Estado Federal surgiu no século XVIII, com a Constituição norte-americana de
1787, não obstante se falar em federações na Grécia antiga, as quais, sem as características
dos Estados federais modernos, traduziam meras alianças temporárias, como as alianças
religiosas dos anctiões, e, mais tarde, na Liga de Delos, na Grécia Central, e na Liga Etólica,
no Peloponeso.
É importante, pois, examinarmos o nascimento histórico do Estado Federal no mundo
moderno, para extrairmos dessa análise o seu perl constitucional.
A federação norte-americana resultou da necessidade que tiveram as ex-treze colônias
inglesas,1 recém-independentes, de não regredirem ao estado colonial, objetivando uma uni-
dade política sucientemente forte para garantir a independência conquistada. Assinaram,
então, em 1781, após a independência ocorrida em 1776, um tratado com o nome de artigos
de Confederação, pelo qual conservava cada Estado independente sua soberania, mesmo
porque esse acordo podia a qualquer tempo ser desfeito pelo Estado subscritor, revogando a
delegação que havia cedido para os Estados Unidos (art. 2º do Tratado).
Surgiu, então, em 1787, a Constituição norte-americana, quando os Estados passaram
a se sujeitar a uma série de princípios e diretrizes emanados da Constituição comum a todos
eles, estreitando-se o vínculo federativo. Reservaram-se todos os poderes que não foram
delegados para a União.
1 As trezes colônias instituidoras dos Estados Unidos foram: Delaware, Pensilvânia, Nova Jersey, Geor-
gia, Connecticut, Massachusetts, Maryland, Carolina do Sul, New Hampshire, Virgínia, Nova Iorque,
Carolina do Norte e Rhode Island.
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Até a criação do Estado Federal norte-americano, em 1787, o regime em vigor era o
confederativo. A Confederação possuía um órgão político central, o Congresso, de cunho
predominantemente diplomático, que carecia de autoridade própria, e respeitava a indepen-
dência dos Estados associados (cada Estado conservava a soberania, a liberdade, e a indepen-
dência, bem como o poder, a jurisdição e os direitos que não foram delegados expressamente
à Confederação). Os seus representantes se reuniam no Congresso para deliberar assuntos
de interesse comum, na sua maioria, os ligados às relações e comércio internacional. O Con-
gresso era subordinado ao poder dos Estados, sujeitando-se ao seu poder de veto (a União
não tinha, por exemplo, competência para criar tributos nem para regulamentar o comércio).
Assim, as decisões só poderiam ser tomadas pela unanimidade dos treze Estados. A necessi-
dade de revisão dos Artigos de Confederação residia em que o poder central não dispunha de
poder para agir sobre os cidadãos que compunham a União, mas apenas poderia recomendar
a aplicação de suas resoluções, cabendo aos Estados (fontes da soberania) adotarem-nas ou
não: o que se buscava era o reforço do poder central, que deveria dispor dos poderes neces-
sários para atuar sobre os cidadãos, sem passar pelos Estados, que passariam a ser autôno-
mos e não mais soberanos. A Confederação acabava por gerar um governo instável, devido
aos constantes impasses políticos, que prejudicavam a ação conjunta e ameaçavam a própria
subsistência da Confederação. Essa instabilidade fez com que se procurasse dotar o país de
um governo efetivamente nacional (um governo central forte, sem, no entanto, concentrar o
poder), criando-se então uma Constituição,2 que instituiu um novo modelo de Estado, o fede-
ral, capaz de garantir a unidade norte-americana, com respeito e assimilação da diversidade.
Desse modo, a Constituição dos Estados Unidos, de 1787, deniu as atribuições da União, e
deixou o resto para os Estados. Os principais objetivos a serem defendidos pela União seriam
a defesa comum dos membros, a preservação da paz pública contra convulsões internas ou
ataques externos, a regulação do comércio com outras nações e a manutenção de relações po-
líticas e comerciais com os países estrangeiros. Dúvidas seriam dirimidas pela Suprema Corte.
O federalismo é denido, na sua acepção positiva, como salienta Ivo Coser, “como um meio
termo entre um governo unitário, com os poderes exclusivamente concentrados na União, e
uma confederação, na qual o poder central seria nulo ou fraco.3
Lê-se no Preâmbulo, sede do Pacto Federativo da Constituição dos Estados Unidos,
cujo comando pertence ao povo, que constituem ns do Pacto: tornar mais perfeita a União,
fortalecendo os laços federativos, que a Confederação enfraqueceu; estabelecer a justiça, as-
segurar a tranquilidade nacional, prover a defesa comum; fomentar o bem-estar geral e as-
2 Para rever os Artigos da Confederação, o Congresso recomendou a convocação, em Filadéla, em
maio de 1787, de uma convenção de Estados. A convocação teve como precedente a Convenção de
Annápolis, de 1786, ocorrida em virtude da disputa comercial entre Virgínia e Maryland, sendo que
doze Estados enviaram representantes, à exceção apenas de Rhode Island. As sessões, que se prolon-
garam por quatro meses, foram presididas por George Washington. Em 17 de setembro de 1787, o
texto constitucional foi assinado por trinta e nove delegados, e enviado ao Congresso, que o aprovou
e submeteu à raticação dos Estados. A Constituição entraria em vigor se pelo menos nove Estados a
raticassem. Para explicar ao povo a nova Constituição e obter apoio para a raticação, foram publica-
dos, nos jornais de Nova Iorque, por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, sob o pseudôni-
mo coletivo de Publius, entre 27 de outubro de 1787 e 4 de abril de 1788, uma série de oitenta e cinco
artigos, reunidos em volume com o título de O federalista.
3 COSER. Federal/Federalismo. In: Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil (FEREZ JÚ-
NIOR, org.), p. 91.
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segurar os benefícios da liberdade. Trata-se de um federalismo de agregação, ou federalismo
integrativo (integrative federalism), em que se busca a unidade na diversidade.
Arma o Prof. Raul Machado Horta que “o Estado Federal criou o Estado não so-
berano”.4 Ao se analisar o Estado Federal, deve-se destacar, assim, as ideias de soberania e
autonomia.
De fato, no Estado Federal a soberania pertence à União e a autonomia, aos Estados-
-Membros, não se falando, pois, em dualidade de soberanias, como se pretendeu por algum
tempo.
Em razão disso, há, no Estado Federal, na concepção de Kelsen, uma ordem jurídica
central e ordens jurídicas parciais, sendo que a primeira abrange todos os indivíduos que se
encontram no território do Estado, e as outras, os que se acham no âmbito territorial dos
entes federados. A reunião dessas duas ordens jurídicas forma a terceira ordem jurídica, que
é o Estado Federal, comunidade jurídica total.
Outro aspecto relevante do Estado Federal é a descentralização político-normativa.
Deveras, há no Estado Federal uma descentralização do poder político, distribuído pela
Constituição entre União e Estados Federados. Não é apenas administrativo o nível dessa
descentralização, mas constitucional-nor mativo, ou seja, cada Estado detém competência
para estabelecer sua organização política, mediante Constituição própria, congurando-se
assim o princípio da autonomia, que “pressupõe um poder de direito público não soberano,
que pode, em virtude de direito próprio e não de delegação, estabelecer regras de direito
obrigatórias”.5
No federalismo coexistem dois ou mais entes políticos autônomos, com capacidade
de auto-organização, unidos por um pacto de cooperação que se expressa na repartição de
competências.
Não há federação sem que se assegure a participação dos Estados federados na for-
mação da vontade nacional, que se manifesta geralmente por uma Câmara Legislativa dos
Estados, o Senado Federal, embora possa haver outros instrumentos que viabilizem essa
participação.
As características do Estado Federal vêm sumariadas por Marcelo Rebelo de Sousa da
seguinte forma:
a) as Constituições dos Estados federados conformam-se necessariamente com a
Constituição do Estado Federal;
b) os Estados federados usualmente não podem desvincular-se do Estado Federal;
c) os Tribunais federais controlam a conformidade das Constituições e leis dos Esta-
dos federados relativamente à Constituição do Estado Federal;
d) compete exclusivamente ao Estado Federal manter as relações internacionais, bem
como denir a política de defesa de toda a federação.
Os principais poderes de que usufruem os Estados federados são os seguintes:
a) os Estados federados se autoconstituem, isto é, elaboram a sua própria Constitui-
ção;
b) os Estados federados participam, através de representantes próprios , na feitura e
4 HORTA. A autonomia do Estado-Membro no direito constitucional brasileiro, p. 39.
5 HORTA. Op. cit., p. 40.
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