Ordem social

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas767-806
SUMÁRIO
1. Considerações gerais – 2. A seguridade social – 3. Educação e cultura – 4. Desporto –
5. Ciência, tecnologia e inovação – 6. Comunicação social – 7. Meio ambiente – 8. Família – 9.
Criança, adolescente, jovem e idoso – 10. Índios.
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS
A Constituição dedica o Título VIII à “ordem social”, que se desvincula da “ordem
econômica”. Afasta-se, assim, o texto constitucional de 1988 da orientação das Constituições
anteriores, que, a partir de 1934, incluíam a “ordem social” no Título da “ordem econômica”.
O Título que examinaremos contém inúmeros princípios e preceitos programáticos,
dependendo sua ecácia de legislação integrativa, mas, de qualquer forma, direcionando a
atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que deverão ater-se às diretrizes nele
enunciadas.
A ordem social tem como base o primado do trabalho, e, como objetivos, o bem-estar
e a justiça sociais, diz o art. 193. Privilegia o texto constitucional o trabalho nas suas relações
com o capital, visando precipuamente à realização da justiça social. O capital constitui, pois,
instrumento para a promoção do bem-estar dos indivíduos, e não um m em si mesmo.
A doutrina social da Igreja valoriza o trabalho, conforme declara a Encíclica Rerum
Novarum, seguida da Carta Encíclica Laborem Exercens, do Papa João Paulo II, editada em
comemoração aos noventa anos daquela. Somente o trabalho dignica o homem, propician-
do-lhe atuar no corpo social, e participar do progresso social e econômico, sentindo-se igual
aos demais. O homem, criado à semelhança e imagem de Deus, é o sujeito do trabalho. O
trabalho, contudo, não pode ser usado contra o homem, em situações de trabalho forçado
(campos de concentração) ou de trabalho escravo, sob pena de atentar-se contra a dignidade
da pessoa humana. O homem não se pode degradar por causa do trabalho, mas deve tornar-
-se mais homem no trabalho. A ausência de trabalho impede a igualdade entre os homens,
porquanto, sem trabalho comprometem-se os demais direitos sociais.
2. A SEGURIDADE SOCIAL
Até alcançar eminência constitucional, a seguridade social passou por algumas etapas.
A primeira delas foi a da assistência pública, de proteção dos pobres, fundada exclusivamen-
te na caridade exercida pela sociedade que dava socorro aos necessitados, primeiro mediante
atividades religiosas, e, depois, por meio de instituições públicas. Os recursos angariados
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destinavam-se a casos de desemprego, enfermidade e invalidez. A assistência aos poucos
desvinculou-se da caridade, e evoluiu para a ideia de que ao Estado cabia amparar os neces-
sitados de proteção social. Na Inglaterra, em 1601, Isabel I editou o Act of the Relief of the
Poor – Lei dos Pobres – com o que surgiu a assistência pública ou social. A Igreja, por suas
paróquias, passou a administrar o Fundo, integrado por uma taxa obrigatória. Na Idade Mé-
dia, algumas corporações prossionais, principalmente os armadores de navios, passaram a
formar fundos ou caixas de socorro para proteção de seus membros.
E da assistência pública passa-se à fase do seguro social, em virtude da questão social e
das conquistas da Revolução Francesa, tendo sido a primeira forma de seguro, de que se tem
notícia, o seguro marítimo, que surgiu em decorrência das reivindicações dos comerciantes
italianos. O seguro privado deu força ao surgimento de diversas outras formas de cobertura:
o seguro de vida, seguro contra danos, contra invalidez, contra doenças etc. Mas as empresas
seguradoras, ao contrário das mútuas, tinham ns lucrativos, e utilizavam cálculos atuariais,
de modo que tivessem sustentáculo nanceiro e pudessem ter conabilidade como instru-
mentos de progresso social. O seguro voluntário, contratual, não logrou garantir proteção
social à classe trabalhadora, pois se destina apenas à minoria que podia custeá-lo, deixando
ao desabrigo os mais necessitados.
Nasce, então, no nal do século XIX, o seguro social, que inaugurou a etapa de prote-
ção dos trabalhadores. Nada obstante ter como modelo o do seguro privado, de c uja relação
participavam empregador, empregado e Estado, a este se passou a incumbência de recolher
e administrar os recursos para nanciamento.
O primeiro plano de previdência social, de que se tem notícia, foi o de Bismarck, na
Prússia, em 1883, que, pela Lei do Seguro-Doença, criou o seguro-enfermidade, iniciando-se
aí uma nova conceituação de proteção social, com o fortalecimento do seguro e sua extensão
a cobertura de riscos de doença, acidente, invalidez, velhice, viuvez, orfandade, desemprego.
O seguro de Bismarck foi adotado por toda a Europa. Com a 1ª Guerra Mundial, esfa-
celaram-se os sistemas de seguro social da Europa, já que foram consumidos os fundos de
reserva. Terminada da Guerra, fundou-se, em 1919, pelo Tratado de Versailles, a Repartição
Internacional do Trabalho, que propiciou o desenvolvimento da previdência social e sua
implantação nos países signatários do Tratado. Na Primeira Conferência Internacional do
Trabalho, de 1919, foi adotada Recomendação para o seguro-desemprego, e, posteriormente,
destaca-se a extensão dos seguros por velhice, invalidez e morte.
Como consequência da 2ª Guerra Mundial, há a transição para a terceira etapa da se-
guridade social, a de proteção dos cidadãos, e que se caracteriza pela proteção de quaisquer
pessoas, em todos os seus estados de necessidades, em todas as etapas de sua vida. Desta-
que-se, em 1941, a formação, pelo Governo Inglês, por intermédio do Ministro sem Pasta
Arthur Greenwood, da Comissão dos Problemas de Reconstrução, presidida por Willian
Beve ridge, de que surgiu o Plano Beveridge apresentado ao Parlamento em 1942. O Plano
considerava que o seguro social deixava sem cobertura pessoas que trabalhavam por conta
própria, muitas vezes mais pobres e necessitadas do amparo do Estado do que as que tinham
emprego, por ser limitado às pessoas vinculadas por contrato de trabalho e submetidas a
certa remuneração. Para o Plano, a seguridade social é apenas parte de uma política ampla de
progresso social porque, se desenvolvida na sua plenitude, pode garantir renda, atacando a
indigência, nada obstante os cinco “gigantes” que dicultam a reconstrução: miséria, doença,
ignorância, ociosidade e insalubridade.
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A evolução dos sistemas de proteção social revela que deixaram de atingir somente
aqueles que contribuíram para o seu custeio, já que a noção de risco, própria do seguro, não
se mostrou adequada à instrumentalização das prestações, passando então a ser utilizado o
conceito de necessidade social (há contingências desejadas que não causam dano, mas geram
necessidades), resultando em proteção mais abrangente em que a álea dá lugar à contingên-
cia, que pode ou não ser desejada. Os benefícios de seguridade social não se revestem mais
de caráter indenizatório, mas podem ser voluntários, e não são necessariamente proporcio-
nais à cotização, destinando-se a prover os mínimos vitais.1
A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Po-
deres Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previ-
dência e à assistência social.
A seguridade social, como um conjunto de medidas que se destinam a atender às ne-
cessidades humanas, e que se refere à ideia de liberação de preo cupaçõ es relativas à socieda-
de, constitui o instrumento jurídico de que dispõe o Estado para a liberação das necessidades
sociais, na forma xada pelo Direito. A seguridade social envolve legislação de caráter sem-
pre “transitório porque os anseios da sociedade mudam na mesma medida em que mudam
as contingências que causam insegurança.2
A seguridade social será custeada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos
termos da lei, mediante recursos provenientes da União, neles compreendidos os impostos
de sua competência residual, dos Es tados, do Distrito Federal e dos Municípios; de contri-
buições sociais dos empregadores, dos trabalhadores, e dos demais segurados da previdência
social, não incidindo sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previ-
dência social de que trata o art. 201; sobre a receita de concursos de prognósticos; do impor-
tador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.
As contribuições sociais para o custeio da seguridade social, a cargo do empregador, da
empresa e da entidade a ela equiparada, poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferencia-
das, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão de obra, do porte da
empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho, como dispõe o § 12º do art. 201,
com a redação dada pela EC n. 47/2005.
Cabe à lei denir os setores de atividade econômica para os quais as contribuições do
empregador, da empresa ou entidade a ela equiparada, incidentes sobre a receita ou fatu-
ramento, bem como do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele
equiparar, serão não cumulativas (§ 12 acrescentado ao art. 195 pela EC n. 42/2003).
Anote-se que as contribuições sociais para o custeio do sistema de seguridade social
somente poderão ser exigidas após decorridos 90 dias da data da publicação da lei que as
houver instituído ou modicado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, b, referente
ao princípio da anterioridade tributária.
Os objetivos da seguridade social vêm discriminados nos incisos I a VII do parágrafo
único do art. 194, destacando-se: a universalidade da cobertura e do atendimento (inciso
I), no sentido de que todos têm direito aos benefícios do sistema, independentemente de
contribuição prévia; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações
urbanas e rurais (inciso II), seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e
serviços (inciso III), que deverão se voltar para os mais necessitados; irredu tibilidade do
1 CHIMENTI et al. Curso de direito constitucional, p. 481-486.
2 CHIMENTI et al. Curso de direito constitucional, p. 481.
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