Processo Legislativo

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas475-545
SUMÁRIO
1. Introdução – 2. Noção de processo legislativo – 3. Atos do processo legislativo – 4. Espécies
normativas – 5. Leis orçamentárias – 6. Plebiscito e referendo – 7. Processo legislativo nos Esta-
dos e Municípios – 8. Processo legislativo e controle da constitucionalidade – 9. Procedimento
legislativo – 10. Legística e técnica legislativa – 11. Considerações nais.
1. INTRODUÇÃO
O processo legislativo é fenômeno especíco do Poder Legislativo, e envolve um con-
junto de regras às quais o legislador deve obedecer para a elaboração das leis.
O Direito é a ciência que prevê o processo de sua própria criação. Assim, o processo
legislativo, que estuda a formação das leis, reveste-se de signicativa importância, na medida
em que se concebe o Direito como complexo normativo.
Neste trabalho abordamos o processo legislativo no sentido estritamente jurídico,
muito embora, segundo elucida Nelson de Sousa Sampaio, possa também ser entendido no
sentido sociológico, quando se refere “ao conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em
movimento os legisladores e ao modo como eles costumam proceder ao realizar a tarefa
legislativa”,1 examinando-se, neste aspecto, a opinião pública, as crises sociais, os grupos de
pressão, os acordos partidários, enm, todos aqueles fatores que, de alguma forma, condicio-
nam ou determinam a “demanda da lei”.
O processo legislativo pode ainda ser analisado sob: a) uma racionalidade fundada nos
princípios do Estado Democrático de Direito; b) a orientação da ética do discurso, conside-
rando os valores de justiça (extrínsecos à sociedade) e segurança jurídica; c) a consideração
de que existem diferenças entre as capacidades argumentativas no momento da criação da
norma (desigualdade de forças, dos grupos representativos, no interior do Parlamento).2
O processo legislativo contemporâneo, apesar de manter sua estrutura básica oriunda
do processo clássico, e sem desconsiderar as orientações procedimentais ou formais, acha-
-se vinculado à ética social na criação da norma jurídica. Fala-se, desse modo, em processo
legislativo material no sentido neopositivista: o processo legislativo é visto como um instru-
mento de absorção e sede dos valores e conceitos vigentes na sociedade, buscando estabele-
cer normas legítimas sob a perspectiva de sua correção material. O processo legislativo é um
sistema que tem por nalidade a organização da deliberação sobre valores, buscando atender
1 SAMPAIO. O processo legislativo, p. 1.
2 CARVALHO. Controle judicial e processo legislativo: a observância dos regimentos internos das casas
legislativas como garantia do estado democrático de direito, p. 75-76.
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às expectativas socialmente reconhecidas e concretiza os ideais que justicam a formação
do Estado Democrático de Direito, cujas regras muitas vezes não se compatibilizam com o
interesse exclusivo do Parlamento. Há, na concepção de Habermas, uma importante subs-
tituição no âmbito da sociedade, que interfere no interior do próprio Parlamento, ou seja,
“o lugar dos cidadãos e seus interesses individuais é ocupado por organizações e interesses
organizados”.3
Assinale-se com Raul Machado Horta que “o processo legislativo não existe autono-
mamente, como valor em si, pois é técnica a serviço de concepções políticas, realizando
ns do Poder. Daí sua mutabi lidade no tempo e na sua compreensão variada, reetindo a
organização social, as formas de Governo e de Estado, a estrutura partidária e o sistema
político”.4
Levando em consideração as formas de organização política, quatro são os tipos de
processo legislativo: a) o autocrático, em que o governante fundamenta em si próprio a com-
petência para dar leis, pertencendo, portanto, a este tipo, todo processo legislativo em que
não seja expressão da atividade legiferante do corpo de cidadãos, seja diretamente, seja por
intermédio de seus representantes; b) o direto, em que as proposições legislativas são discu-
tidas e votadas pelo próprio povo; c) o indireto ou representativo, em que o povo escolhe seus
representantes, a quem cabe decidir sobre as proposições legislativas; d) o semidireto, em que
a elaboração das leis cabe ao órgão legislativo competente com a concordância do eleitorado,
mediante o referendum popular.
A organização bicameral do Poder Legislativo é uma constante no processo legislati-
vo brasileiro, mas, como assinala Raul Machado Horta, os tipos variados de bicameralismo
resultaram em distintos modelos de processo legislativo: a) o processo legislativo complexo
organizado pela Constituição de 1891, propício aos embaraços e à lentidão legislativa, em
que se compunha, com requintamento técnico e embaraços recíprocos, a orquestração do
governo deliberativo do século XX, em especial pela revisão complexa do projeto de lei;5 b)
o processo legislativo híbrido da Constituição de 1934, que reetiu o hibridismo da solução
constitucional, ou seja, ele foi bicameral quando se impunha a colaboração do Senado na
confecção dos atos legislativos, e monocameral, quando essa colaboração era dispensada; c)
o processo legislativo nominal da Carta de 1937, porquanto, nesse setor, a Carta permaneceu
inaplicada; d) o processo legislativo de equilíbrio da Constituição de 1946, que restaurou va-
lores preteridos na experiência autoritária de 1937; e) o processo legislativo autoritário, con-
cebido e organizado pela Constituição de 1967 e pela Emenda Constitucional de 1969, que,
entre outras medidas, converteram o Presidente da República em legislador, pela expedição
do decreto-lei, e colegislador, mediante os instrumentos que lhe asseguravam ampla inicia-
3 HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. II, p. 59.
4 HORTA. O processo legislativo nas constituições federais brasileiras. Revista de Informação Legisla-
tiva, 101/5.
5 A revisão complexa “impunha, no seu primeiro tempo, ou terceiro ato da tramitação bicameral, a volta
do projeto à Câmara revisora, e se as alterações nela obtivessem dois terços dos votos dos membros
presentes, considerar-se-iam aprovadas, para ingresso no quarto ato da tramitação, quando devolvido
o projeto à Câmara iniciadora, esta só poderia rejeitá-las pela maioria de dois terços dos votos dos
membros presentes. Se assim ocorresse, sendo rejeitadas as alterações da Câmara revisora, por idênti-
ca maioria, o projeto seria submetido à sanção presidencial, concluindo o último ato do procedimento
complexo, propício aos embaraços recíprocos e à lentidão legislativa” (HORTA. Direito constitucional,
p. 522).
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tiva sobre qualquer matéria de competência da União; o benefício dos prazos de deliberação
abreviada e de urgência, amparados na deliberação automática e de urgência; a exclusividade
da iniciativa de projetos de lei de maior relevância, com a vedação de emendas que aumen-
tam a despesa neles prevista.6
Ainda no sistema constitucional brasileiro, ao que se extrai da Constituição de 1988,
o processo legislativo se acha norteado, entre outros, pelos princípios relativos à indepen-
dência dos Poderes (para o exercício de suas competências e atribuições), ao exercício dos
direitos políticos, à composição partidária da representação parlamentar, às competências
dos entes federativos, ao do Estado Democrático, em especial à tomada de decisões pelo voto
majoritário.
2. NOÇÃO DE PROCESSO LEGISLATIVO
O processo legislativo compreende o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação,
sanção e veto) realizados pelos órgãos legislativos, visando à formação de emendas à Cons-
tituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos
legislativos e resoluções que, como espécies normativas, constituem o seu objeto.7
Para Marcelo Caetano, o processo legislativo consiste na “sucessão ordenada dos trâ-
mites a observar na elaboração dos atos normativos pelos órgãos colegiados constitucional-
mente competentes para legislar, e das formalidades complementares.8
Nelson de Sousa Sampaio esclarece que o processo legislativo “prescreve a competên-
cia e a forma para a criação de normas de caráter geral, inclusive, portanto, das normas dos
outros processos”.9
A expressão processo legislativo sugere dúvida, levantada por Manoel Gonçalves Ferrei-
ra Filho, sobre o signicado de legislativo no texto constitucional: “referir-se-á esse adjetivo
à matéria ou ao sujeito? E se ao sujeito, a qual sujeito, o Poder Legislativo ou o Legislador?”10
Na realidade, considerando a matéria, no elenco dos objetos do processo legislativo se
encontram atos de efeitos concretos, como as resoluções, e não se inserem outros de caráter
abstrato, como os regimentos internos de cada Casa Legislativa ou dos Tribunais, e, conside-
rando o sujeito, o processo legislativo inclui as emendas à Constituição, que não são elabora-
das pelo legislador ordinário, mas pelo Poder Constituinte Derivado ou Poder de Revisão, e
ainda trata das medidas provisórias elaboradas pelo Presidente da República, não obstante a
possibilidade de se converterem em lei por manifestação do Legislativo.
A palavra processo, embora seja precipuamente empregada para a atividade jurisdicio-
nal, a sua adoção para a atividade legiferante denota uma abrangência ampla da expressão,
que alcança a noção técnica do modus operandi na elaboração das normas, sem privilegiar as
suas fontes, e trata ainda das espécies normativas sujeitas ao controle de constitucionalidade
quanto à sua elaboração.
6 HORTA. Direito constitucional, p. 521-534.
7 SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 452.
8 CAETANO. Direito constitucional, v. 2, p. 275.
9 SAMPAIO. O processo legislativo, p. 3.
10 FERREIRA FILHO. Do processo legislativo, p. 199.
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