Poder Judiciário

AutorKildare Gonçalves Carvalho
Ocupação do AutorProfessor licenciado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas585-679
SUMÁRIO
1. Função jurisdicional – 2. Monopólio da jurisdição – 3. O devido processo legal – 4. Garantias
e vedações da magistratura – 5. Controle externo – O Conselho Nacional de Justiça – 6. Compe-
tência dos Tribunais – 7. Os magistrados e seu estatuto – 8. Organização do Poder Judiciário – 9.
Supremo Tribunal Federal – 10. Superior Tribunal de Justiça – 11. Justiça Federal Comum – 12.
Justiça do Trabalho – 13. Justiça Eleitoral – 14. Justiça Militar – 15. Juizados Especiais e Justiça
de Paz – 16. Justiça dos Estados – 17. Precatórios Judiciais – 18. A reforma do Poder Judiciário.
1. FUNÇÃO JURISDICIONAL
O Poder Judiciário declara o direito defendendo a Constituição. Além disso, cabe
ao Poder Judiciário controlar os demais Poderes do Estado, tendo como parâmetro a
Constituição.
O Poder Judiciário acha-se também vinculado aos direitos fundamentais, e dessa vin-
culação resulta-lhe “não só o dever de guardar estrita obediência aos chamados direitos fun-
damentais de caráter judicial, mas também o de assegurar a efetiva aplicação do direito, em
especial dos direitos fundamentais, seja nas relações entre os particulares e o Poder Público,
seja nas relações tecidas exclusivamente entre particulares. Da vinculação do Judiciário aos
direitos fundamentais decorre, ainda, a necessidade de se aferir a legitimidade das decisões
judiciais, tendo em vista sobretudo a correta aplicação desses direitos aos casos concretos”.1
Utilizando a expressão “poder judicial”, Canotilho arma que após ter sido descurado
pela dogmática constitucional, nos últimos tempos parece voltar a reaparecer o interesse
doutrinário em torno desse poder. Acentua que ao “renascimento” do poder judicial como
poder que suscita delicadas questões jurídico-constitucionais estão ligadas várias causas que
podem ser sintetizadas do seguinte modo: “(1) o problema da legitimação do poder judicial;
(2) o problema do autogoverno das magistraturas; (3) o problema da responsabilidade dos
juízes; (4) o problema da automovimentação mediática dos agentes do poder judicial”.2
A função jurisdicional é substitutiva da vontade das partes na aplicação do Direito: a
autotutela (salvo em casos especialíssimos, como a legítima defesa) é substituída pela tutela
estatal, ou seja, a lide será resolvida pelos órgãos judiciários próprios que substituem a von-
tade privada.
Além desse caráter de substituição, caracterizam a função jurisdicional a provocação
e a denitividade. Nenhum juiz atua senão mediante provocação do interessado: nemo
1 MENDES. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 118.
2 CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 573.
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iudex sine actore,3 enquanto que a Administração age quase sempre de ofício. Também
as decisões do Judiciário tendem a deni tividade, fazendo coisa julgada, sendo que os
atos administrativos são quase sempre revogáveis. A tutela jurisdicional se obtém, ainda,
mediante o devido processo legal (de que cuidaremos adiante), nota relevante para a ca-
racterização da jurisdição. Enm, como na expressão de Pedro Lessa, “o Poder Judiciário
é o que tem por missão aplicar contenciosamente a lei a casos particulares”. A jurisdição
não cria, mas integra o Direito.
Há distinção entre função administrativa e função jurisdicional: “Através da função
administrativa realiza-se a prossecução dos interesses públicos correspondentes às necessi-
dades colectivas prescritas pela lei, sejam esses interesses da comunidade política como um
todo ou interesses com os quais se articulem relevantes interesses sociais diferenciados. Na
função jurisdicional dene-se o Direito (juris dictio) em concreto, perante situações da vida
(litígios entre particulares, entre entidades públicas e entre particulares e entidades públicas,
e aplicação de sanções), e em abstracto, na apreciação da constitucionalidade e da legalidade
de actos jurídicos (maxime, de actos normativos).
Donde:
“– O interesse público como causa dos actos da função administrativa; e o cumprimen-
to das normas jurídicas como causa dos actos da função jurisdicional.
– Uma postura essencialmente volitiva e prospectiva a da administração; e uma postura
essencialmente intelectiva e retrospectiva a da jurisdição.
– Na função administrativa, o predomínio da componente autoritária, mesmo se tem
de se compaginar com a crescente armação de garantias dos administrados e com formas
associativas de organização; e na função juris dicional a presença do princípio do contraditó-
rio, mesmo se nem sempre o processo é concebido como processo de partes.
– A maior liberdade relativa dos órgãos da função administrativa, com gradações vá-
rias no caso do chamado poder discricionário, ainda que o princípio da legalidade, mais do
3 Defende Pedro Lenza (Teoria geral da ação civil pública, p. 291-292) que na sociedade moderna os
poderes instrutórios do juiz têm aumentado, o que possibilita ao juiz avançar até os limites tolerados
pelo ordenamento jurídico, mas sempre observando a integridade do devido processo legal. Menciona
o autor diversos instrumentos constantes do CPC (de 1973) que viabilizam tais poderes instrutórios: “
a) apreciação pelo magistrado de matérias de ordem pública ex ocio (arts. 13, 113, 219, § 5º, 267, § 3º;
301, § 4º); b) a determinação, de ofício, em qualquer estado do processo, do comparecimento pessoal
das partes, para interroga-las sobre os fatos das causas (art. 342); c) a possibilidade de o juiz ordenar,
de ofício, a qualquer das partes, a exibição parcial de livros ou documentos (art.382); d) o interroga-
tório das testemunhas (arts. 416, 418); e) a possibilidade de determinar, de ofício, a realização de nova
perícia, quando a matéria não lhe parecer sucientemente esclarecida (art. 346); f) no tocante à prova
pericial, as regras prescritas nos arts. 436 e 437; g) a inspeção judicial (art. 440); h) a competência para
o juiz proceder direta e pessoalmente à colheita de das provas (art. 446, II); i) a xação dos pontos
controvertidos (art. 451); j) o prescrito no art. 461, § 5º); k) o poder geral de cautela previsto no art.
798; l) a participação ativa em outras atividades, destacando-se: a abertura do inventário (art. 989);
a correção, de ofício, das inexatidões materiais da partilha (art. 1.028); a plenitude do princípio da
investigação de ofício na jurisdição voluntária (art. 1.107), podendo, inclusive, decidir por equidade,
adotando, em cada caso especial, a solução que reputar mais conveniente ou oportuna (art. 127 c/c o
art. 1.109); m) os poderes previstos nos arts. 1.113, 1.129, 1.142, 1.160; n) a possibilidade de suscitar
o conito de competência (art. 116), bem como incidente de uniformização (art. 476); o) o dever de
reprimir, de maneira enérgica, a litigância de má-fé, condenando, de ofício, o improbus litigator (art.
18); p) a minimização do formalismo (arts. 154, 244 e 250, parágrafo único).
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que compatibilidade, implique conformidade dos actos com a lei e nunca o interesse público
que se lhe possa sobrepor.4
Se a função administrativa vincula-se ao princípio da impessoalidade (art. 37), a ma-
gistratura submete-se ao princípio da imparcialidade (art. 95, parágrafo único).
O “juízo estabelecido pelo Judiciário se expressa numa série de proposições encadeadas
em raciocínio designadas como ‘sentença’ quando proferidas por um juiz, e ‘acórdão’ quando
proferidas por um tribunal. Ele se produz durante um ato conhecido como ‘julgamento, cujo
resultado ou conteúdo é uma ‘decisão’ a respeito de uma ‘causa’ que foi levada ao conheci-
mento judicial. Tendo nascido como subsidiária da ordem, segundo o interesse do poder do-
minante, a função jurisdicional aos poucos se transformou em serviço. É função do governo
prover a existência de serviços judiciários que garantam aos sujeitos em geral a existência e
exercício dos seus direitos. Esse é serviço tão vital quanto o fornecimento de água ou de ou-
tras necessidades básicas: sem ele as pessoas cam submetidas aos interesses dos mais fortes,
subordinadas às potências econômicas, midiáticas e políticas.5
É estreita a relação entre o Judiciário e a Democracia.
Se o povo é titular do poder político, este se subordina à Constituição.
Há, no Estado Democrático de Direito um afrontamento entre a autonomia, a liberda-
de do indivíduo, e a heteronomia, ou seja, a coerção externa do poder político. E o Judiciário
“é o artíce desse equilíbrio. A função ínsita do juiz é pacicar os conitos. Mediante solu-
ções rápidas e efetivas, ele reduz as tensões. Remove a insatisfação de que se considera lesado
e o libera para a convivência social harmônica. As decisões judiciais calibram a convivên cia
entre a liberdade e a coerção. Por isso, o Judiciário avaliza o Estado de Direito de índole de-
mocrática e contribui para a concretização desse ideal”.6
A crescente expansão do direito, dos seus procedimentos e instituições sobre a política
e a sociabilidade tem levado o Judiciário a se desbordar do quadro da aplicação contenciosa
da lei para uma apreciação do mérito do ato ou fato posto sob a sua apreciação. Desse modo,
o exame da estrita legalidade não basta, cabendo ao Judiciário sindicar a legitimidade da
questão sob julgamento. Como exemplos desta nova postura que se exige do Judiciário men-
cione-se a ação civil pública, em que se deve salvaguardar o patrimônio público e social, o
meio ambiente, os interesses difusos, o julgamento das ações populares, em que se deve con-
siderar a moralidade administrativa e a tutela do meio ambiente, o patrimônio histórico e
cultural, mencionando-se ainda o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas
corpus, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de inconstitucionalidade e
a arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Há, por isso mesmo, uma judicialização da política e das relações so ciais.
A judicialização da política é conceito que envolve: I – a presença de um novo ativismo
judicial pelos tribunais; II – o interesse dos políticos e administradores em adotar: a) méto-
dos e procedimentos típicos do processo judicial; b) parâmetros jurisprudenciais adotados
pelo Judiciário nas suas decisões. Arma Marcus Faro de Castro que: “(omissis) a transfor-
mação da jurisdição constitucional em parte integrante do processo de formulação de polí-
ticas públicas deve ser visto como um desdobramento das democracias contemporâneas. A
4 MIRANDA. Manual de direito constitucional, t. 5, p. 29-30.
5 CUNHA. Fundamentos de direito constitucional, v. 1, p. 309, 312.
6 NALINI. Proposta concreta para um novo judiciário. In: Lex, v. 208 (separata), p. 29.
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