'Fique em casa' notas para uma taxonomia dos 'familiares'

AutorGuilherme de Oliveira
Páginas291-306
“FIQUE EM CASA”
NOTAS PARA UMA TAXONOMIA DOS
“FAMILIARES”1
Guilherme de Oliveira
Professor catedrático jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra, Fundador e
Diretor do Centro de Direito da Família, Fundador e Presidente-Honorário do Centro
de Direito Biomédico.
“I ain’t got nobody. Nobody cares for me...
Roger Graham and Spencer Williams, 1915.
Sumário: 1. Uma denição formal de “familiares” – 2. As funções da família; 2.1 As funções de
sempre; 2.2 Alterações da importância relativa das funções. Companhia, cuidado, encargo de
outrem e partilha de recursos; 2.2.1 Companhia; 2.2.2 Cuidado; 2.2.3 Encargo de outrem; 2.2.4
Partilha de recursos – 3. Alargar a noção de “familiares”. As funções e os títulos;3.1 Nas relações
horizontais;3.2 Nas relações verticais – 4. “Fique em casa”. Famílias e casas (lares) – 5. Conclusões.
1. UMA DEFINIÇÃO FORMAL DE “FAMILIARES”
É natural que um livro sobre protozoários comece por def‌inir o que eles são,
para que se possa entender o objeto do estudo. Pela mesma razão, pode esperar-se
que um texto sobre Direito da Família def‌ina o que se entende por “familiares”.
Mas os textos sobre Direito da Família têm grandes dif‌iculdades para encontrar
uma def‌inição2. Não admira, por duas razões:
a) em primeiro lugar, porque talvez a def‌inição não seja muito necessária. De
facto, quase sempre que as regras legais atribuem direitos ou impõem obrigações
a algumas pessoas que têm maior proximidade com outra, as leis discriminam as
relações familiares a que querem dar relevância (p.ex., arts. 1844.º, 1846.º, 1862.º,
CCiv); ou então referem-se genericamente a “familiares”, mas dizem logo quem
consideram como tal (“os serviçais que vivam habitualmente em comunhão de mesa
1. Inspirado pela obra de HERRING, Jonathan, sobretudo, pelo texto Making family law less sexy... and more
careful, In: LECHEY, R. After legal equality: family, sex, kinship. Routlegde, 2014. p. 25-41. Publicado pre-
viamente na revista Julgar online, com diferenças ligeiras.
2. Conferir., por exemplo, PINHEIRO, Jorge Duarte. O direito da família contemporâneo. 7. ed. Lisboa: Gestlegal,
2020. p. 17-18. HERRING, Jonathan. Family law. 9. ed. Oxford: Pearson, 2019. p. 2-12. DETHLOF Nina.
Familienrecht, 31. ed. Munchen: C.H.Beck, 2015. p. 19-. TERRÉ, François; FENOUILLET, Dominique.
Droit civil, la famille. 8. ed. Paris: Dalloz, 2011. p. 20-. SESTA, Michele. Manuale di diritto di famiglia. 7. ed.
Padova: CEDAM, 2016. p. 31-32. DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Sistema de derecho civil. Derecho
de família. v. IV, 12. ed. Madrid: Tecnos, 2018. p. 5-7.
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e habitação com o locatário ou o locador” – arts. 1040.º, n.º 3, 1050.º, 1072.º, CCiv;
para a def‌inição das necessidades da família do usuário ou do morador usuário, cfr.
os arts. 1484.º e 1487.º, CCiv).
Só excecionalmente a lei atribui efeitos que dependem da condição genérica de
“familiares” ou equiparados a familiares, o que pode tornar equívoca a aplicação do
preceito: assim, não se sabe exatamente o que se entende por “assuntos familiares
importantes” que justif‌icam ouvir a opinião dos menores, no art. 1878.º, n.º 2, CCiv;
certas penas são agravadas se “do facto resultar [...] destruição das relações familiares
[...] de outra pessoa” [art. 361.º, n.º1].
b) CPen; pode duvidar-se se a noção de “familiares” do art. 67.º-A do CProcPen
abrange pessoas economicamente dependentes, apenas de facto, da vítima; não se
concretizam os vínculos que são contidos pela expressão “seus familiares”, no qua-
dro da “Proibição e imposição de condutas”, no art. 200.º, n.º 1, CProcPen; não se
def‌inem as “relações [...] familiares” no âmbito da Inquirição de testemunhas (art.
348.º, n.º 3, CProcPen); também pode discutir-se o que se entende por “familiares”
no domínio relativo a Informação genética pessoal e informação de saúde (Lei n.º
12/2005, de 26 de janeiro, atualizada pela Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto, e DL n.º
131/ 2014, de 29 de agosto);
Em segundo lugar, não parece possível encontrar uma noção única e satisfatória.
A def‌inição mais tentadora para os juristas e para as codif‌icações assentará no
enunciado taxativo de certas relações jurídicas consideradas “familiares” e que,
portanto, f‌icam sob a alçada do corpo de leis que se designa por “direito da família”;
esta foi a solução do código civil português de 19663, que se mantém até hoje.
Mas esta def‌inição já foi acusada de várias def‌iciências4: de misturar fontes das
relações jurídicas familiares (o casamento e a adoção) com o conteúdo de outras
relações jurídicas familiares (o parentesco e a af‌inidade).
Sobretudo, o que se pode censurar nesta def‌inição é o seu caráter puramente
formal5, tanto nas relações familiares horizontais quanto nas relações familiares ver-
ticais. Isto é, pressupõe-se que só cabem na noção de Família as relações jurídicas
familiares que tenham passado por uma certif‌icação prévia of‌icial, de acordo com os
critérios dominantes do sistema jurídico, independentemente do conteúdo real da
relação que seja demonstrável de algum modo. Por exemplo, esta def‌inição dá um
valor absoluto à celebração de um casamento, ainda que o vínculo tenha durado, na
realidade, três semanas, enquanto nega a natureza de relação familiar a uma união
de facto que tenha durado, porventura, trinta anos. Haverá também quem possa
estranhar que um irmão radicalmente desavindo com outros, durante toda a vida,
3. Art. 1576.º CCiv: “São fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a af‌inidade e a
adopção”.
4. COELHO, F. M. Pereira. Curso de direito da família. Coimbra: Coimbra Editora, 1981. p. 7.
5. PINHEIRO, Jorge Duarte. O direito da família contemporâneo. 7. ed. Lisboa: Gestlegal, 2020. p. 13-14.
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