'Mãos que falam' o ensino da língua brasileira de sinais como prática solidária de inclusão social

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama e Diovânia Maria Sabino da Fonseca Melhorance
Páginas273-289
“MÃOS QUE FALAM”
O ENSINO DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS
COMO PRÁTICA SOLIDÁRIA
DE INCLUSÃO SOCIAL
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e do IBMEC/
RJ. Professor Permanente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da
Universidade Estácio de Sá. Vice-presidente e Desembargador Federal do Tribunal
Regional Federal da 2ª Região. Coordenador da Rede de Juízes de Enlace para a
Convenção da Haia de 1980. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Diovânia Maria Sabino da Fonseca Melhorance
Pesquisadora e Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ).
Sumário: 1. Nota introdutória: surdo ou deciente auditivo? – 2. Metodologias de ensino usadas na
educação de surdos – 3. Libras para todos como prática de inclusão e de solidariedade – 4. Nota con-
clusiva: a solidariedade como fundamento para a transformação inclusiva em favor da pessoa surda.
1. NOTA INTRODUTÓRIA: SURDO OU DEFICIENTE AUDITIVO?
O século XXI vem se destacando como um período de transformações ocorridas
no âmbito da civilização humana, com o desenvolvimento das características da
pós-modernidade, entre as quais se situa o movimento internacional de proteção
das minorias e das pessoas mais vulneráveis. Por certo que as modif‌icações ocor-
ridas no curso da história, como regra, se revelaram processos sociais cujo tempo
não é possível identif‌icar em um único episódio ou acontecimento facilmente
identif‌icado. Ao revés: as alterações do tratamento de certos temas no âmbito social
normalmente decorrem de um conjunto de eventos que se sucedem em períodos
distintos de tempo.
Nesse contexto se insere o enfoque contemporâneo a respeito das pessoas com
def‌iciência que, no curso do processo histórico, tradicionalmente passaram por
fases distintas até o atingimento do estágio atual do quadro civilizatório. Também é
relevante contextualizar que o enfoque atual a respeito do tema leva em consideração
outras áreas de conhecimento além da Ciência Jurídica, revelando o necessário enfo-
que multidisciplinar que os temas devem receber na contemporaneidade sob pena de
se adotar um viés equivocado acerca das questões que se apresentam a seu respeito.
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GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA E DIOVÂNIA MARIA SABINO DA FONSECA MELHORANCE
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Durante grande parte do século XX, as def‌iciências em geral eram vistas a partir
de uma concepção estritamente biomédica, na qual estas eram consideradas como
sendo meros desvios de um padrão de normalidade, as quais limitavam, dif‌icultavam
ou impossibilitavam a execução das atividades diárias e/ou a integração social pelas
pessoas com def‌iciência1. Na experiência brasileira, essa visão foi evidenciada atra-
vés do Decreto nº 3.298/89 que, em seu art. 3º, ao regulamentar a Lei nº 7.853/89,
def‌iniu a def‌iciência como “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função
psicológica, f‌isiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de
atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.
Especialmente no que tange à def‌iciência auditiva, o art. 4º do supracitado De-
creto tentou def‌inir o que esta seria, seguindo os mesmos parâmetros biomédicos
daquela época:
Art. 4º. É considerada pessoa portadora de deciência a que se enquadra nas seguintes
categorias: [...] II – deciência auditiva – perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um
decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz
e 3.000Hz; [...]2.
Tal def‌inição trazida pelo art. 4º do Decreto nº 3.298/89, além de não distinguir
a pessoa surda do def‌iciente auditivo, centralizou a questão da def‌iciência apenas no
indivíduo, desconsiderando que suas limitações ocorrem muitas das vezes, não por
algo intrínseco, mas pela discriminação negativa imposta pela sociedade, devido às
barreiras e obstáculos criados no meio social.
Acerca dessa visão, os autores do artigo “Def‌iciência, Direitos Humanos e Justiça
da SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos” bem assinalam:
A normalidade, entendida ora como uma expectativa biomédica de padrão de funcionamento
da espécie, ora como um preceito moral de produtividade e adequação às normas sociais, foi
desaada pela compreensão de que deciência não é apenas um conceito biomédico, mas a
opressão pelo corpo com variações de funcionamento. A deciência traduz, portanto, a opressão
ao corpo com impedimentos: o conceito de corpo deciente ou pessoa com deciência devem
ser entendidos em termos políticos e não mais estritamente biomédicos.
Essa passagem do corpo com impedimentos como um problema médico para a deciência como
o resultado da opressão é ainda inquietante para a formulação de políticas públicas e sociais.
Deciência não se resume ao catálogo de doenças e lesões de uma perícia biomédica do corpo,
é um conceito que denuncia a relação de desigualdade imposta por ambientes com barreiras a
um corpo com impedimentos3.
1. PALACIOS, 2008 apud BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor (coord.). Comentários ao estatuto da
pessoa com def‌iciência à luz da constituição da república. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 35.
de 1989. Brasília, DF: Presidência da República, 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/d3298.htm . Acesso em: 31 out. 2020.
3. DINIZ, Debora; BARBOSA, Lívia; SANTOS, Wederson Ruf‌ino dos. Def‌iciência, direitos humanos e justiça.
SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos. v. 6, n. 11, dez. 2009, p. 65-77.
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