Higino repaginado: o cuidado psíquico em ferenczi, winnicott e bion

AutorSergio Nick e Ana Carolina Cubria
Páginas475-493
HIGINO REPAGINADO: O CUIDADO PSÍQUICO
EM FERENCZI, WINNICOTT E BION
Sergio Nick
Psiquiatra e Psicanalista; Vice-Presidente da International Psychoanalytical Association
– IPA (2017-2021); Psicanalista de Crianças e Adolescentes – COCAP/IPA; Membro
efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro – SBPRJ; Membro da
ABP – Associação Brasileira de Psiquiatria.
Ana Carolina Cubria
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Membro do
Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC/UFRJ),
graduada em Psicologia pela UFRJ.
Sumário: 1. O cuidado – 2. A ética do cuidado em psicanálise – 3. A ética do cuidado em ferenczi;
3.1 Hospitalidade; 3.2 A Empatia; 3.3 A saúde mental de quem cuida – 4. A ética do cuidado na
psicanálise winnicottiana – 5. Bion: o cuidado sustentado na rêverie – 6. À guisa de conclusão.
1. O CUIDADO
Partiremos da conhecida Fábula de Higino (poeta latino, 50-139d. C.), igual-
mente conhecida como Mito do Cuidado, que narra, de forma poética, o papel do
cuidado na estruturação do homem. Segundo a Fábula:
Cuidado, ao atravessar um rio, viu uma massa de argila, e, mergulhado em seus pensamentos,
apanhou-a e começou a modelar uma gura. Enquanto deliberava sobre o que zera, Júpiter
apareceu. Cuidado pediu que ele desse uma alma à gura que modelara e facilmente conseguiu.
Como Cuidado quisesse dar o seu próprio nome à gura que modelara, Júpiter o proibiu e ordenou
que lhe fosse dado o seu. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam, apareceu Terra, a qual igualmente
quis que o seu nome fosse dado a quem ela dera o corpo. Escolheram Saturno como juiz e este
equitativamente assim julgou a questão: “Tu, Júpiter, porque lhe deste a alma, Tu a receberás de-
pois de sua morte. Tu, Terra, porque lhe deste o corpo, Tu o receberás quando ela morrer. Todavia,
porque foi Cuidado quem primeiramente a modelou, que ele a conserve enquanto ela viver. E,
agora, uma vez que, entre vós, existe uma controvérsia sobre o seu nome, que ela se chame Ho-
mem, porque foi feita do humus [da terra]1.
Podemos depreender desta fábula-mito que a natureza do cuidado é compreen-
dida como aquela que molda a existência humana, sobrepondo-se a outros elementos
1. ROCHA, Z. A ontologia Heideggeriana do cuidado e suas ressonâncias clínicas. Síntese – Revista de Filoso-
f‌ia, v. 38, n. 120. p. 75. (Tradução nossa). Disponível em: http://faje.edu.br/periodicos2/index.php/Sintese/
article/view/1037/1461. Acesso em: 08 jul. 2021.
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que participam da origem do homem, como a alma e o corpo. O personagem Cuidado
se destaca a partir de sua criatividade em transformar a argila em uma f‌igura humana,
recebendo a tarefa de conservar o Homem no decorrer de sua vida, de forma que a
beleza desta fábula-mito se encontra na simplicidade da apresentação dos aspectos
que constituem e participam da nossa existência. E ainda que, em um primeiro
momento, o julgamento de Saturno tenha parecido equânime, percebemos que é o
Cuidado quem é atrelado à vida do homem de forma indissociável.
Encontramos, seguindo uma linha semelhante de pensamento, os escritos de
Leonardo Boff, mais especif‌icamente, sua obra Saber cuidar: ética do humano com-
paixão pela terra2. Segundo o último autor, cuidar das coisas signif‌ica ter intimidade,
senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar, portanto,
é estar sintonizado com auscultar-lhes o ritmo e ajustar-se a ele. Na obra citada, Boff
def‌ine o cuidado como:
[...] uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro; entra
na natureza e na constituição do ser humano. Sem cuidado, ele deixa de ser humano. O modo
de ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado, ele deixa de ser
humano. Se não receber cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se,
denha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não zer com cuidado tudo o que empreender,
acabará por prejudicar a si mesmo por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve
ser entendido na linha da essência humana3.
Outro autor que contribuiu para o tema relacionado a uma ética do cuidado é
Heidegger, a partir de seu ponto de vista existencial. Para o autor, o cuidado prece-
de qualquer comportamento humano, ou seja, ele é encontrado em toda atitude e
situação de fato. Ele é, portanto, o modo de ser essencial da humanidade, estando
presente em tudo. Em suma, para o f‌ilósofo alemão, o cuidado seria o fenômeno on-
tológico-existencial básico4. Com isso, o cuidado seria um modo de ser no mundo, o
qual fundamenta as relações estabelecidas com todas as coisas. É justamente no jogo
de relações, na coexistência e na convivência que o ser humano funda seu próprio
ser, a consciência de si e sua própria identidade5.
Além disso, o termo cuidado, na descrição dos dicionários clássicos de f‌ilologia,
é derivado do latim cura (coera), tendo sido usado em contexto de relações de amor e
amizade. Demonstrava a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquie-
tação pela pessoa ou objeto valorizados6. Alguns f‌ilólogos acreditavam que a origem
da palavra se situa em cogitare-cogitatus e suas derivações coeydar, coidar, cuidar.
2. BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2003.
3. BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 34.
4. BARRETO, J.A.E.; MOREIRA, R.V.O. A decisão de saturno: f‌ilosof‌ia, teorias de enfermagem e cuidado hu-
mano. Fortaleza: Casa José de Alencar, 2000.
5. BOUWMAN, M. W. A ética do cuidado na clínica psicanalítica. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n.
36, p. 109–116, 2011.
6. BOUWMAN, M. W. A ética do cuidado na clínica psicanalítica. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n.
36, p. 109–116, 2011.
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