Entre a genealogia do cuidado e a escuta humanizada: a solidariedade para quem cuida na pandemia do coronavírus

AutorFernando de Almeida Silveira, Acary Souza Bulle Oliveira e Sissy Veloso Fontes
Páginas257-272
ENTRE A GENEALOGIA DO CUIDADO E A ESCUTA
HUMANIZADA: A SOLIDARIEDADE PARA QUEM
CUIDA NA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Fernando de Almeida Silveira
Advogado, Psicólogo, Doutor em Psicologia(USP), Pós-doutor em Filosoa (UFSCar),
Professor Associado de Psicologia e Humanismo; e Trabalho em Saúde da Universidade
Federal de São Paulo – UNIFESP – Campus Baixada Santista.
Acary Souza Bulle Oliveira
Médico, Residência em Neurologia (Unifesp), Mestre e Doutor em Neurociências/
Neurologia (Unifesp), Pós-Doutor em Neurologia,Professor Aliado do Departamento
de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina (EPM) daUniversidade
Federal de São Paulo (Unifesp).
Sissy Veloso Fontes
Psicóloga, Fisioterapeuta, Professora de Educação Física,Especialização em Teorias e
Técnicas para Cuidados Integrativos (Unifesp) e, em Intervenção Fisioterapêutica em
Doenças Neuromusculares (Unifesp), Mestre em Neurociências (Unifesp), Doutora
em Ciências/Neurologia (Unifesp), Professora Aliada do Departamento de Neu-
rologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp),Diretora de Planejamento da Associação Brasileira de Cuidados
Integrativos (ABRACI).
Sumário: 1. Introdução – 2. Uma genealogia do cuidado – 3. O cuidado na Grécia e Roma antigas
– 4. O cuidado para os primeiros cristãos, intensicado pelos atos confessionais na idade média
– 5. O cuidado da alma moderna iluminista – 6. Solidariedade para quem cuida: descrição de um
atendimento de cuidado na pandemia do coronavírus – 7. Considerações nais: solidariedade
para quem cuida.
1. INTRODUÇÃO
A crise existencial, social, econômica e política, evidenciada no contexto atual
da pandemia do coronavírus – vem evocar dois campos de ref‌lexão para a compre-
ensão de nossa história do presente: os campos do cuidado e da solidariedade em
seu processo histórico e civilizatório de pressuposição recíproca; seja enquanto
práticas sociais, seja enquanto discursos de constituição de nossas subjetividades,
na emergência sempre mutável de nossas provisórias condições de cuidadores ou
benef‌iciários de cuidado.
O primeiro destes dois campos de ref‌lexões diz respeito a uma genealogia do
cuidado, compreendida enquanto gênese histórica das concepções de cuidado em
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vários momentos civilizatórios, com o intuito de desnaturalizar o cuidado enquanto
realidade objetivada, vasculhando seus relevos e singularidades em vários macro-
momentos da história do Ocidente.
Compreendendo-se genealogia enquanto proveniência – ou seja, a investiga-
ção da produção das identidades em sua emergência no transcurso da história, no
caso, afeitas aos sujeitos de cuidado – este ensaio visa ilustrar f‌iguras do sujeito de
cuidado no contexto da História do Ocidente, com suas peculiaridades próprias,
promovendo uma primeira aproximação panorâmica de suas condições de possibi-
lidades e mutações.
Em articulação à sua concepção siamesa de solidariedade, na medida em que
se compreende que cuidar é cuidar-se no mundo, é relacionar-se em cooperação
social e que, conforme será apresentado, o cuidado, mais do que um voltar-se para
si no sentido de um asseio sobre si mesmo, é remeter-se a valores historicamente
constituídos na construção de uma ética sobre si mesmo, como também na relação
com os outros e com o mundo.
Isto nos remeterá a uma compreensão ontológica do cuidado baseada em Hei-
degger, conforme veremos, seguidas de ilustrações e aproximações do cuidado em
vários momentos históricos: desde a Antiguidade helenística e romana; passando
porperíodos do cristianismo e relevando a concepção cartesiana e científ‌ica do cui-
dado moderno, em muitos momentos, embasada sobre a obra de Michel Foucault.
Este contexto no qual, conforme dito, cuidado e solidariedade se inter-reportam,
servirá como esteio – epistemológico e histórico – para apresentação de um projeto
contemporâneo de cuidado, referente à construção coletiva da Escuta Humanizada
para acolhimento dos Prof‌issionais de Frente da Pandemia de Hospital público da
Grande São Paulo.
De maneira que para compreendermos o cuidado contemporâneo, delinearemos
f‌iguras históricas do cuidado para nos sensibilizarmos sobre a abertura urgente – iné-
dita e ímpar – que a pandemia do coronavírus vem nos lançar, de maneira abrupta,
intensa e mobilizadora de afetos sobre nossos corpos e almas.
2. UMA GENEALOGIA DO CUIDADO
Do ponto de vista de uma ontologia – ou seja, do estudo do ser-no-mundo
– segundo Heidegger1, compreende-se cuidado enquanto modo de ser estrutural
da presença do homem no mundo, na medida em que a angústia de constituirmos
sentido em ser-com-os-outros no mundo faz emergir o cuidado como condição de
possibilidade da própria existência.
Ademais, enquanto presença intramundana, o sujeito de cuidado não se remete,
para Heidegger, a um “homo in clausus” solipsista e isolado; mas em uma relação
1. HEIDEGGER, M. Ser e tempo – parte I. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 255-256.
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