A guarda compartilhada aplicada à luz do princípio da solidariedade e do dever de cuidado: visão crítica dos artigos 1.583 e 1.584 do código civil

AutorAugusto Drummond Lepage e Francisco Eduardo Loureiro
Páginas153-169
A GUARDA COMPARTILHADA APLICADA À LUZ
DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E DO DEVER
DE CUIDADO: VISÃO CRÍTICA DOS ARTIGOS
1.583 E 1.584 DO CÓDIGO CIVIL
Augusto Drummond Lepage
Graduadoem Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela
PUC-SP Desembargador do Tribunal de Justiça de SP Diretor da Escola Paulista da
Magistratura de SP no biênio 2.018/2.
Francisco Eduardo Loureiro
Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo.Juiz de Direito com atuação
nas Varas da Família há 23 anos. Coordenador da Área de Direito de Família da Escola
Paulista da Magistratura.
Sumário: 1. O princípio constitucional da solidariedade e o direito de família – 2. Solidariedade e
guarda compartilhada: imperfeições dos Artigos 1.583 e 1.584 Do Código Civil3. Solidariedade,
guarda compartilhada com divisão de tempo e guarda alternada – 4. Conclusão.
1. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE E O DIREITO DE
FAMÍLIA
A Constituição Federal de 1988 alçou a solidariedade à condição de princípio
constitucional, ao prever no art. 3º, I, ser objetivo fundamental da República Fede-
rativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Na lição de Maria Celina Bodin, a solidariedade pode ser compreendida como um
[...] fato social que dá razão à existência do ser humano no mundo, como virtude ética para que
uma pessoa reconheça na outra um valor absoluto ainda mais amplo do que a justa conduta
exigiria, e, ainda, como resultado de uma consciência moral e de boa-fé como comportamento
pragmático para evitar lesão a outrem, a si mesmo, e à sociedade1.
O princípio da solidariedade, a exemplo dos direitos e garantias fundamentais,
incide não apenas nas relações dos indivíduos para com o Estado, mas também nas
relações privadas, entre grupos de pessoas.
1. MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da solidariedade. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA,
Isabela Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (org.). 2003, p. 167-190 apud CARDOSO, Alenilton da Silva
Cardoso. Princípio da solidariedade: a conf‌irmação de um novo paradigma. Revista Forense, v. 405, set./out.
2009. p. 04.
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Não obstante os direitos e garantias fundamentais exerçam importante função de
limitar o poder do Estado, impondo a este a observância de condutas ativas e deveres
de abstenção perante os cidadãos, são também aplicáveis a estes em suas relações
privadas. Fala-se, nesse sentido, não só na ef‌icácia vertical dos direitos fundamen-
tais, atinente ao vínculo Estado-cidadão, mas também em sua ef‌icácia horizontal
(ou ef‌icácia privada/ef‌icácia em relação a terceiros)2, concernente às relações dos
particulares entre si.
Não há dúvida que o Direito de Família é campo fértil para aplicação do princípio
da solidariedade, em suas múltiplas facetas. As formações familiares se encontram
funcionalizadas, voltadas à realização de seus membros e garantia dos vulneráveis.
Existe solidariedade recíproca entre cônjuges e companheiros, quanto aos de-
veres de assistência e socorro. Há relação de colaboração, não mais de subordinação
entre os cônjuges, como ocorria no Código Civil de 1916.
No que se refere aos f‌ilhos, a solidariedade importa no dever jurídico “da pessoa
ser cuidada até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida instruída e educada para
sua plena formação social. A Convenção Internacional sobre Direitos da Criança
inclui a solidariedade entre os princípios a serem observados, o que se reproduz no
ECA (art. 4º)”3.
É preciso estar atento, porém, mais uma vez na justa observação de Paulo Lobo,
que os princípios, por sua natureza de conteúdo indeterminado e aberto, necessitam
da intermediação do Poder Judiciário para que possam adquirir a plenitude de sua
força normativa4.
Diversos precedentes dos tribunais af‌irmam, por exemplo, que os alimentos
entre cônjuges não mais se subordinam à inocência de quem pede, ou à culpa de quem
paga, nos termos do artigo 1.702 do Código Civil. Não são prêmio pela boa conduta,
ou pena pelo mau comportamento durante o casamento, temas que se solucionam
no campo da responsabilidade civil – danos morais ou materiais – mas sim repousam
na solidariedade que ilumina a relação de conjugalidade.
Necessário, porém, que o princípio da solidariedade se aplique nos tribunais
com mais ênfase ao regime de guarda e visitas dos f‌ilhos menores, com a exata com-
preensão do signif‌icado da guarda compartilhada e divisão de tempo entre os pais.
2. SARLET, Ingo. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais. Revista dos Tribunais, v. I, 2012. p. 433.
3. LÔBO, Paulo Luiz Neto. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In: CONRADO,
Marcelo; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo (org.). Direito privado e constituição: ensaios para uma recomposição
valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 329.
4. LÔBO, Paulo Luiz Neto. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In: CONRADO,
Marcelo; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo (org.). Direito privado e constituição: ensaios para uma recomposição
valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 326.
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