A historiografia conservadora da independência

AutorAirton Cerqueira-Leite Seelaender, Arno Wehling
Páginas107-128
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A HISTORIOGRAFIA CONSERVADORA DA INDEPENDÊNCIA
Conceito. Histórias são relatos sobre acontecimentos passados
que, por mais objetivos e rigorosos que sejam, inevitavelmente refletem,
em maior ou menor grau, os valores e as circunstâncias daqueles que os
produzem. Quando estes são solidários com partidos ou movimentos
sociais, elas exprimem mais nitidamente visões ideológicas de mundo. Elas
se tornam histórias partidárias, que retroprojetam no passado as disputas
políticas do presente para legitimar historicamente suas causas atuais. Elas
exaltam os personagens com os quais simpatizam, por identificá-los como
seus antecessores, e apresentam suas ações como justas e necessárias. E,
pela razão oposta, minimizam ou negam o valor e a justiça das ações
praticadas por outros personagens, com os quais antipatizam, por associá-
los aos ancestrais de seus adversários. Quando o legado ideológico de
movimentos e partidos do passado é reivindicado por grupos no presente
para legitimar a persecução de seus valores e interesses atuais, surgem
tradições ou linhagens políticas. Os relatos produzidos ao longo do tempo
pelos legatários de uma mesma tradição conformam uma historiografia
partidária, cujas histórias são reaproveitadas pelos herdeiros presuntivos
para justificar historicamente a justiça de suas causas.
Do ponto de vista ideológico, as historiografias podem ser
classificadas conforme os valores que as orientem na interpretação dos
fatos históricos. Elas são conservadoras, caso privilegiem a defesa da
autoridade; liberais, se consagram a defesa da liberdade; ou socialistas, se
adotarem a igualdade como critério supremo de julgamento da justiça dos
acontecimentos e personagens históricos. A historiografia conservadora
oitocentista brasileira, nesse sentido, reúne o conjunto dos relatos
históricos elaborados por integrantes dos partidos conservadores atuantes
durante a vigência do regime imperial (1822-1889). A interpretação dos
fatos da Independência tem para ela uma importância estratégica, porque
legitima historicamente o regime monárquico constitucional, avaliado
como o único regime capaz de conciliar a preservação da unidade nacional
(a “ordem”) com um moderno sistema de liberdades públicas (a
“liberdade”). Porque valoriza sempre a liberdade, ainda que subordinada à
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ordem, essa historiografia deve ser compreendida mais exatamente, do
ponto de vista ideológico, como conservadora liberal.
Historiadores e obras mais representativos. A historiografia
conservadora oitocentista costuma ser associada àquela produzida pelos
membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). O critério
ignora a autonomia da instituição e apaga as diferenças ideológicas entre
seus sócios, que podiam pertencer formalmente tanto ao partido
conservador (como Pereira da Silva e Tristão de Alencar Araripe) quanto
ao liberal (como Joaquim Manuel de Macedo e o Barão Homem de Mello),
ou a nenhum deles (como o Visconde de Porto Seguro). Por isso prefiro
adotar como critério o pertencimento formal às duas agremiações
partidárias reconhecidamente conservadoras do século XIX.
A primeira delas, que existiu entre as décadas de 1820 e 1840, foi
apelidada, por seus adversários, de “partido português”, “partido
recolonizador” e “partido restaurador”. Ela será referida aqui como
partido realista”, expressão então empregada por observadores menos
envolvidos na luta política. Esse partido tinha dois núcleos: aquele
vinculado aos conselheiros de D. Pedro I, oriundos da burocracia joanina,
e aquele reunido em torno dos Andrada, que haviam comandado a
Independência e chefiado o “partido caramuru” na primeira metade da
década de 1830. O primeiro núcleo do “partido realista” produziu a
História dos principais sucessos políticos do Império do Brasil (1830), da
lavra do Senador José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. Silva Lisboa era
um velho servidor da Coroa, incorporado ao núcleo duro de funcionários
brasileiros que serviam no segundo escalão do governo de D. João VI
quando de sua chegada ao Brasil. Encomendada por seu filho, Dom Pedro
I, a História de Cairu representa, assim, o ponto de vista dos altos
funcionários que dominavam o Senado e o Conselho de Estado durante o
Primeiro Reinado, como o Visconde de Cachoeira e os Marqueses de
Caravelas, Paranaguá, Inhambupe e Queluz. O segundo núcleo do “partido
realista” produziu o Compêndio da História do Brasil (1843), do General
José Inácio de Abreu e Lima. Abreu e Lima lutara ao lado de Simón Bolívar
pela independência da Grã-Colômbia e voltara ao Brasil desiludido com o
potencial desagregador do republicanismo. Seu compêndio reflete a visão
do grupo reunido em torno de José Bonifácio durante a Regência, formado
por seus irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco, e deputados como

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