A historiografia liberal da independência

AutorAirton Cerqueira-Leite Seelaender, Arno Wehling
Páginas129-150
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A HISTORIOGRAFIA LIBERAL DA INDEPENDÊNCIA
Conceito. Histórias são relatos sobre acontecimentos passados
que, por mais objetivos e rigorosos que sejam, inevitavelmente refletem,
em maior ou menor grau, os valores e as circunstâncias daqueles que os
produzem. Quando estes são solidários com partidos ou movimentos
sociais, elas exprimem mais nitidamente visões ideológicas de mundo. Elas
se tornam histórias partidárias, que retroprojetam as disputas políticas do
presente para legitimar historicamente suas causas atuais. Elas exaltam as
personagens com as quais simpatizam, por identificá-los como seus
antecessores, e apresentam suas ações como justas e necessárias. E, pela
razão oposta, minimizam ou negam o valor e a justiça das ações praticadas
por outras personagens, com as quais antipatizam, por associá-las aos
ancestrais de seus adversários. Quando o legado ideológico de movimentos
e partidos do passado é reivindicado por grupos no presente para legitimar
a persecução de seus valores e interesses atuais, surgem tradições ou
linhagens políticas. Os relatos produzidos ao longo do tempo pelos
legatários de uma mesma tradição conformam uma historiografia
partidária, cujas histórias são reaproveitadas pelos herdeiros presuntivos
para justificar historicamente a justiça de suas causas.
Do ponto de vista ideológico, as historiografias podem ser
classificadas conforme os valores que as orientem na interpretação dos
fatos históricos. Elas são conservadoras, caso privilegiem a defesa da
autoridade; liberais, se consagram a defesa da liberdade; ou socialistas, se
adotarem a igualdade como critério supremo de julgamento da justiça dos
acontecimentos e personagens históricos. A historiografia liberal
oitocentista brasileira, nesse sentido, reúne o conjunto dos relatos
históricos elaborados por integrantes dos partidos liberais atuantes durante
a vigência do regime imperial (1822-1889). Dando primazia ao valor da
liberdade em detrimento da ordem, essa historiografia liberal interpreta os
fatos históricos da Independência conforme a necessidade de justificar
reformas da monarquia no sentido de ampliar o poder do Parlamento e das
províncias em detrimento do imperador e da centralização política,
respectivamente. Por exigir das personagens do passado que se empenhem
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em compatibilizar a autoridade existente com as exigências da liberdade,
revelando assim a necessidade da reforma política e da reinterpretação da
Constituição de 1824, é que essa historiografia pode ser qualificada de
liberal.
Historiadores e obras representativas. A historiografia liberal
elogia os governos, regimes, personagens ou acontecimentos históricos
representativos do ideal de liberdade e critica aqueles que reputa
expressivos de tendências autoritárias.
A historiografia liberal da Independência foi produzida no século
XIX pelo partido então conhecido como moderado, progressista ou,
simplesmente, liberal. Preocupados com a agenda de reformas do presente,
os intelectuais do partido liberal eram evolucionários que preferiam
questionar não a Independência, que lhes parecia assunto vencido, mas o
modelo de governabilidade centrado no imperador, instituído no final da
década de 1830 pelos conservadores. Por isso mesmo, pensando o tempo
mais pelo prisma de uma filosofia do progresso histórico do que por um
ângulo historicista, houve menos liberais do que conservadores dedicados
à tarefa de historiar.
A história liberal da Independência é tributária de quatro autores.
O primeiro é o inglês John Armitage, comerciante próximo dos
liberais moderados da Regência e cuja História do Brasil (1837), publicada
anônima, foi por isso mesmo longamente atribuída a Evaristo da Veiga.
Embora sua história não seja propriamente partidária, buscando ser
acurada e relativamente imparcial, ela forneceu os principais parâmetros
da filosofia da história “whig” que modelariam no reinado de D. Pedro II
a historiografia liberal.
O segundo foi o deputado Francisco Inácio Homem de Melo, barão
do mesmo nome e autor de Estudos Históricos Brasileiros (1858); A
Constituinte perante a História (1862) e Estudos Históricos e Literários
(1868). Além de político, Homem de Melo também foi historiador
propriamente dito, tendo exercido, na mocidade, o cargo de professor de
História do Colégio Pedro II e, na maturidade, o de vice-presidente do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Seu ponto de vista
representa aquele do grupo de jovens que– em torno de José Bonifácio, o
Moço, em São Paulo, e de Francisco Octaviano, no Rio– estava empenhado
no renascimento liberal por volta de 1860. Eles se juntariam logo a

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