A historiografia radical da independência

AutorAirton Cerqueira-Leite Seelaender, Arno Wehling
Páginas151-174
151
A HISTORIOGRAFIA RADICAL DA INDEPENDÊNCIA
Conceito. Histórias são relatos sobre acontecimentos passados
que, por mais objetivos e rigorosos que sejam, inevitavelmente refletem,
em maior ou menor grau, os valores e as circunstâncias daqueles que os
produzem. Quando estes são solidários com partidos ou movimentos
sociais, elas exprimem mais nitidamente visões ideológicas de mundo. Elas
se tornam histórias partidárias, que retroprojetam no passado as disputas
políticas do presente para legitimar historicamente causas atuais. Elas
exaltam os personagens com os quais os autores simpatizam, por
identificá-los como seus antecessores, e apresentam suas ações como justas
e necessárias. E, pela razão oposta, minimizam ou negam o valor e a justiça
das ações praticadas por outros personagens, com os quais antipatizam, por
associá-los aos ancestrais de seus adversários.
Quando o legado ideológico de movimentos e partidos do passado
é reivindicado por grupos para legitimar a persecução de seus valores e
interesses atuais, surgem tradições ou linhagens políticas. Os relatos
produzidos ao longo do tempo pelos legatários de uma mesma tradição
conformam uma historiografia partidária, cujas histórias são
reaproveitadas pelos herdeiros presuntivos para demonstrar a justiça
histórica de suas causas.
Do ponto de vista ideológico, as historiografias podem ser
classificadas conforme os valores que as orientem na interpretação dos
fatos passados. Elas são conservadoras, caso privilegiem a defesa da
autoridade; liberais, se consagram a defesa da liberdade; ou socialistas, se
adotarem a igualdade como critério supremo da justiça dos acontecimentos
e personagens. A historiografia liberal exige a compatibilidade, também no
passado, da autoridade com as exigências da liberdade. Ela pode ser
moderada, caso deseje a reforma gradual das instituições, ou radical, caso
deseje subvertê-las.
A historiografia radical oitocentista brasileira reúne o conjunto
dos relatos históricos elaborados por integrantes dos partidos liberais
radicais durante o regime imperial (1822-1889). Destacando e defendendo
de modo extremamente intenso a liberdade como valor, ela radicaliza a
152
interpretação liberal da Independência, com o objetivo de justificar
reformas constitucionais que venham a ampliar, em detrimento da
monarquia e da centralização política, o poder do Parlamento e das
províncias, chegando por fim ao republicanismo. Ela servirá de base para
a historiografia republicana e, no século XX, será aproveitada ao se
formular aquela de orientação socialista.
Historiadores e obras representativas. A historiografia radical
oitocentista veiculava a apologia dos períodos, governos, regimes,
personagens ou acontecimentos históricos representativos do ideal de
liberdade, detratando aqueles que julgasse expressivos de tendências
autoritárias. Sua historiografia da Independência foi elaborada no século
XIX pela ala esquerda e minoritária do partido liberal, ou seja, pelo setor
conhecido sucessivamente como exaltado, “luzia”, histórico, radical e,
depois de 1870, republicano. Ela se diferenciava dos liberais moderados
pelo descompromisso com a monarquia: sua retórica de patriotismo
intransigente, típica da linguagem republicana clássica, justificava a
conversão do Império constitucional de 1824 em “monarquia republicana”
ou mesmo sua substituição por uma república federativa.
Os radicais produziram pouco material que se possa, hoje,
classificar como “história” ou “estudo histórico”. Vendo a história como
mera auxiliar da sua propaganda, não se preocuparam com a produção de
relatos novos, precisos ou fidedignos dos acontecimentos. Ao contrário,
suas obras se limitavam, aqui, a colher informações dos intérpretes de
outras linhas.
Ao mesmo tempo em que radicalizavam e estendiam a crítica
liberal do reinado de D. Pedro I para todo o período monárquico, os
radicais repetiam a estratégia conservadora de sempre colocar a monarquia
como a protagonista dos acontecimentos. O objetivo, porém, não era mais,
aqui, o de glorificar o regime, mas sim o inverso: enxovalhá-lo como
responsável por todos os males do país.
A historiografia radical ficou registrada principalmente em
panfletos com narrativas partidárias destinadas a justificar, ao fim, a
reforma constitucional, a convocação de uma nova constituinte ou a
instauração da república. São dois os panfletos que produziram mais
impacto na elaboração das narrativas radicais. O primeiro foi A Estátua
Equestre (1862), da autoria do principal chefe dos “liberais históricos”– o

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT