O incidente de desconsideração da personalidade jurídica e o direito processual do trabalho

AutorGabriela Bins Gomes da Silva
Ocupação do AutorPós-graduada em Direito do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos
Páginas90-109
O Incidente de Desconsideração da Personalidade
Jurídica e o Direito Processual do Trabalho
Gabriela Bins Gomes da Silva(1)
(1) Pós-graduada em Direito do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Oficial
de Justiça Avaliador Federal no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Membro do Grupo de Estudos “As Interfaces entre o Processo
Civil e o Processo do Trabalho”. E-mail: .
(2) Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, prece-
dida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato
constitutivo.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo objetiva analisar o incidente de des-
consideração da personalidade jurídica (IDPJ) e a reper-
cussão dessa inovação legislativa no âmbito do processo
laboral. O artigo inicia-se com a importante ressalva de que
o instituto da desconsideração da personalidade já era tra-
tado pelo ordenamento jurídico no plano material e ampla-
mente utilizado nos processos trabalhistas (sem a previsão
de um procedimento legal específico) a fim de garantir-se
efetividade à jurisdição.
O procedimento processual denominado incidente de
desconsideração da personalidade jurídica foi regulamen-
tado com a edição do Código de Processo Civil de 2015 e,
a partir daí, iniciaram-se inúmeras discussões acerca da sua
aplicabilidade ou não ao Processo do Trabalho. Ocorre que,
antes que o assunto se pacificasse na doutrina e na juris-
prudência laboral, em julho de 2017, com a publicação da
Lei n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), inseriu-se o art.
855-A na CLT, o qual dispôs expressamente sobre a aplica-
bilidade do incidente previsto no Código de Processo Civil
ao Processo do Trabalho – incorporando o entendimento já
adotado pelo TST (Tribunal Superior do Trabalho) na Ins-
trução Normativa n. 39 (IN n. 39) –, embora com algumas
peculiaridades.
Diante de todas as alterações legislativas mencionadas,
o artigo pretende apresentar um substrato teórico que pos-
sa instigar o leitor a buscar uma interpretação fundada nos
fins sociais a que as normas trabalhistas se destinam. Nesse
sentido, propõe-se que o norte interpretativo seja a preser-
vação dos direitos sociais constitucionalmente garantidos
e dos princípios próprios que norteiam o ramo jurídico
laboral, a exemplo da celeridade, da proteção, da simplici-
dade, da efetividade da jurisdição, da irrenunciabilidade e
do caráter alimentar do crédito trabalhista – sem perder de
vista os princípios do contraditório e da ampla defesa, que
norteiam o processo como um todo.
Não há pretensão de que o artigo esgote o tema, mas
almeja-se, com este estudo, reforçar a função instrumental
do Direito Processual do Trabalho a fim de dar a máxima
contribuição para a promoção da efetividade da jurisdição.
1.1. A ficção legal denominada pessoa jurídic a e sua
regulamentação em âmbito material
Antes de iniciar a análise da inovação legislativa – que
prevê um conjunto concatenado de atos para alcançar o
patrimônio pessoal dos sócios – e de sua aplicabilidade ao
processo laboral, vale retomar, brevemente, a regulamenta-
ção material do instituto da desconsideração da personali-
dade jurídica e algumas de suas peculiaridades em âmbito
trabalhista.
Sabe-se que, quando uma empresa é constituída formal-
mente, ela adquire personalidade jurídica. Esse processo
ocorre com a inscrição, no registro próprio e na forma da
lei, dos seus atos constitutivos – art. 45 do Código Civil
(CC).(2) Isso é feito com o intuito de que os bens da pessoa
jurídica não se confundam com o patrimônio pessoal de
seus sócios, além de possibilitar às empresas adquirirem
direitos e obrigações em seu próprio nome, diminuindo as-
sim os riscos da atividade empresarial.
Essa ficção jurídica – instituir personalidade à empre-
sa – fomenta a atividade empresarial e confere a ela capa-
cidade para figurar em juízo independentemente de seus
sócios. A propósito, tem-se o conceito de pessoa jurídica
elaborado por Flávio Tartuce:
As pessoas jurídicas, denominadas pessoas coletivas,
morais, fictícias ou abstratas, podem ser conceituadas
como sendo conjuntos de pessoas ou de bens arrecada-
dos, que adquirem personalidade jurídica própria por
uma ficção legal. Apesar de o Código Civil não repetir
a regra do art. 20 do CC/1916, a pessoa jurídica não se
confunde com seus membros, sendo essa regra ineren-
te à própria concepção da pessoa jurídica. (TARTUCE,
2011, p. 114-115).
Ocorre que, apesar da autonomia conquistada pela
pessoa jurídica, a interpretação, no que tange ao tema da
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responsabilização patrimonial, deve ser harmonizada com
artigos dispõem que o devedor responde com todos os seus
bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obri-
gações (ou seja, com os bens preexistentes ao ajuizamento
da demanda e com aqueles que sobrevierem ao patrimônio
do executado) e que, mais ainda, estão sujeitos à execução
também os bens dos sócios, nos termos da lei, caso a socie-
dade não possua bens suficientes para garantir a execução.
Nesse sentido:
O débito compreende um dever para o devedor e
uma responsabilidade para o seu patrimônio. A obriga-
ção, como dívida, é objeto do direito material; a respon-
sabilidade, como sujeição dos bens do devedor a sanção
que atua pela submissão à expropriação executiva, é
instituto processual. São, como se vê, coisas distintas
e, exatamente por isso, e por não necessariamente se
identificarem, é que se admite que alguém que não seja
devedor-obrigado possa ser responsabilizado em seu pa-
trimônio. (NUNES; NÓBREGA, 2016, online).
Assim, apesar de, como regra geral, o patrimônio da
pessoa jurídica ser autônomo e independente em relação à
figura de seus sócios, esses últimos têm responsabilidade
secundária. Isso quer dizer que, em determinadas situa-
ções, seu patrimônio também pode ser alcançado a fim de
arcar com a dívida da pessoa jurídica. Esse fenômeno é
possível por meio da desconsideração da personalidade
jurídica.
O desprestígio da pessoa jurídica se dá diante da ocor-
rência de fatos determinantes, quais sejam, a utilização
fraudulenta ou abusiva da pessoa jurídica e o empecilho
colocado pela personalidade jurídica ao ressarcimento de
danos merecedores de proteção especial a exemplo da verba
(3) Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabe-
lecidas em lei. [...] Art. 790. São sujeitos à execução os bens: [...] II – do sócio, nos termos da lei; [...].
(4) Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito,
excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada
quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (...) § 5º
Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos causados aos consumidores.
(5) Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à
qualidade do meio ambiente.
(6) Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso
de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: (...) III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito
privado.
(7) Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste
abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A descon-
sideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados
por má administração.
(8) Alterado na data da escrita deste artigo pela Medida Provisória n. 881, de 2019, ainda não convertida em lei. Art. 50. Em caso de abuso da
personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Mi-
nistério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações
sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
(Redação dada pela Medida Provisória n. 881, de 2019) § 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da
pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Medida Provisória
n. 881, de 2019) § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído
alimentar trabalhista. Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho
afirma que:
[...] em determinadas situações, ao se prestigiar o prin-
cípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpe-
trado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela
licitude da conduta da sociedade empresária. Somen-
te se revela a irregularidade se o juiz, nessas situações
(quer dizer, especificamente no julgamento do caso),
não respeitar esse princípio, desconsiderá-lo. (COE-
LHO, 2015, p. 55).
É importante que se diga que levantar o “véu” da pessoa
jurídica não se trata de decretar sua extinção ou de desper-
sonalizá-la definitivamente, mas, sim, de uma desconside-
ração temporária da sua personalidade.
Isso é feito para alcançar o patrimônio pessoal dos só-
cios nos limites de determinado processo. Nesse sentido,
Fábio Ulhoa Coelho explica: “A aplicação da teoria da des-
consideração não implica a anulação ou desfazimento do
ato constitutivo da sociedade empresária, mas apenas a sua
ineficácia episódica” (COELHO, 2015, p. 64). Isso porque,
muitas vezes, a execução só atinge seu fim – satisfazer di-
reitos reconhecidos judicialmente – quando os bens dos
sócios são chamados a responder patrimonialmente pelo
débito.
Em relação às situações em que se torna possível des-
considerar a personalidade jurídica da empresa, vale re-
cordar que a matéria conta com ampla previsão legal no
direito material. A teoria está prevista no art. 28, § 5º, do
no art. 4º da Lei de Proteção do Meio Ambiente (Lei n.
9.605/1998),(5) no art. 135 do Código Tributário (Lei n.
5.172/1966),(6) no art. 34 da Lei do Direito da Concorrên-
cia (Lei n. 12.529/2012)(7) e no art. 50 do Código Civil.(8)

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