Judicialização da saúde e covid-19: o que podemos aprender para os outros tempos

AutorCynthia Pereira de Araújo e Camila Mota Cavalcante
Ocupação do AutorMestre e doutora em Direito pela PUC-Minas. Advogada da União. Membro do Comitê Executivo Estadual da Saúde de Minas Gerais de 2014 a 2018/Graduanda em Direito. Membro Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Bioética (GEPBio) do Centro Universitário Newton Paiva
Páginas307-329
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E COVID-19:
O QUE PODEMOS APRENDER PARA
OS OUTROS TEMPOS
Cynthia Pereira de Araújo
Mestre e doutora em Direito pela PUC-Minas. Advogada da União. Membro do Comitê
Executivo Estadual da Saúde de Minas Gerais de 2014 a 2018.
Camila Mota Cavalcante
Graduanda em Direito. Membro Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em
Bioética (GEPBio) do Centro Universitário Newton Paiva.
Sumário: 1. Introdução. 2. Panorama geral da judicialização da saúde no Brasil. 3. Judi-
cialização em tempos de Covid-19. 4. Princípios do Sistema Único de Saúde. 5. A univer-
salidade invisível dos tempos normais. 6. A visibilização da escassez. 6.1 Ações coletivas
e constitucionais em tempos de Covid-19. 6.2 Quando vale a escassez? 7. Considerações
nais. 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em 11 de março de 2020, a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, foi
caracterizada pela Organização Mundial da Saúde como uma pandemia. Todos os países
do mundo estão sendo afetados, em maior ou menor medida, e o Brasil não é exceção.
Em razão da grande preocupação com as possibilidades do Sistema Único de Saúde
de absorver os impactos das novas demandas decorrentes de uma epidemia de tão grandes
proporções, diversas ações judiciais vêm sendo ajuizadas diariamente, especialmente
contra a União. Diferente do que acontece em tempos normais, a judicialização da saúde,
há muito consolidada no país, está se caracterizando, em relação à Covid-19, por uma
prevalência de ações coletivas e uma postura comedida dos magistrados.
A forma como princípios regentes do SUS é desconsiderada normalmente e as possí-
veis razões que levam a essa postura diferenciada dos magistrados no momento presente
auxiliam na ref‌lexão sobre a forma como o Judiciário tem atuado na judicialização da
saúde no Brasil, uma judicialização sem paralelo nos outros países.
2. PANORAMA GERAL DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL
A partir da década de 1980, o Brasil passou por um processo de redemocratização,
que acarretou grandes avanços no sistema de proteção dos direitos fundamentais no
CYNTHIA PEREIRA DE ARAÚJO E CAMILA MOTA CAVALCANTE
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país, em especial no que tange à proteção do direito à saúde. Com a promulgação da
Constituição da República Federativa do Brasil (CF), em 5 de outubro de 1988, o Brasil
retomou os princípios de um Estado Democrático de Direito1.
Constitucionalizou-se, na órbita dos direitos sociais, a proteção do direito à saúde
(artigo 6º). A partir do artigo 196, a Constituição de 1988 introduziu uma seção específ‌ica
sobre o tema, dispondo que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, garantido
mediante políticas sociais e econômicas. E, nos termos do artigo 198, inaugurou o Sis-
tema Único de Saúde – SUS, ao prever que “as ações e serviços públicos de saúde serão
estruturados em uma rede regionalizada e hierarquizada, formando um sistema único
de saúde”.
Este novo modelo constitucional representa um marco quanto à questão da saúde
no Brasil. Anteriormente à Constituição de 1988, os serviços de saúde eram administra-
dos de forma centralizada, sendo obrigação apenas da União, e ainda assim, destinados
apenas a trabalhadores segurados. Os demais precisavam pagar pelos serviços ou buscar,
quando houvesse, instituições f‌ilantrópicas ou instituições dos estados ou municípios2.
Do ponto de vista normativo em matéria de saúde, o Brasil é considerado um dos
países mais avançados no mundo, além de ser um dos poucos a estabelecer universalidade
e integralidade como princípios norteadores de seu sistema3.
O SUS é, sem dúvidas, uma das maiores realizações da população brasileira. Ao
contrário dos britânicos, no entanto, que consideram seu sistema de saúde – o NHS,
National Health Service, no qual se inspirou o SUS – como uma das “joias da Coroa”4 ou
sua “única religião nacional”5, a despeito de todos os seus problemas6, é comum que o
brasileiro desconheça a importância de seu sistema de saúde e despreze seu sucesso em
termos populacionais.
Os resultados do SUS demonstram o tamanho da conquista que representa. Exem-
plo disso são as impressionantes marcas, como a realização, por ano, de mais de 1,5
1. AITH, Fernando. A Saúde como Direito de Todos e Dever do Estado: O Papel dos Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário na Efetivação do Direito à Saúde no Brasil. In: Direito Sanitário: Saúde e Direito, um Diálogo Possível.
Belo Horizonte: ESP-MG, 2010, p. 73. Disponível em: .br/wp-content/uploads/2012/06/
Direito-sanitario_Final.pdf>. Acesso em 05 de abril de 2020.
2. PAIM, Jairnilson Silva. O Que é o SUS: e-book interativo. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015. (Temas em saúde
Collection).
3. ARAÚJO, Cynthia Pereira de; LÓPEZ, Éder Maurício Pezze; JUNQUEIRA, Silvana Regina Santos. Judicialização
da Saúde: Saúde pública e outras questões. Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2016, p. 25.
4. SAHUQUILLO, María R. Saúde pública, a grande briga ideológica do Reino Unido. El País, 06/05/2015. Disponível
em: . Acesso em 27 de
agosto de 2016.
5. TAYLOR, Roger. God bless the NHS. London: Faber and Faber, 2013.
6. Sobre as dif‌iculdades enfrentadas pelo NHS – um dos mais completos e provavelmente o melhor sistema de saúde
pública do mundo, tão gratuito e universal quanto o sistema de saúde pública brasileiro, matéria de 2016 informava
que, desde 2010, haviam sido fechados um de cada quatro centros de atendimento contínuo, com aumento em
11% das listas de espera e cortes de até 10% nos salários dos trabalhadores da saúde. Além disso, cerca de cinquenta
distritos sanitários tinham, alguns com déf‌icits de mais de 20 milhões de libras (SAHUQUILLO, María R. Saúde
pública, a grande briga ideológica do Reino Unido. El País, 06/05/2015. Disponível em:
brasil/2015/05/05/internacional/1430850229_139505.html>. Acesso em 27 de agosto de 2016.)

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