Prescrição extintiva nos vinte anos de vigência do Código Civil

AutorEduardo Nunes de Souza
Ocupação do AutorDoutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas53-139
Prescrição extintiva nos vinte anos de
vigência do Código Civil
Eduardo Nunes de Souza1
Sumário: Introdução: prescrição extintiva no Código Civil; 1. O
problema do termo inicial de fluência dos prazos prescricionais no
Código Civil; 2. O problema do prazo prescricional da pretensão
indenizatória na responsabilidade contratual; 3. O problema da
desproteção de pessoas com deficiência mental e o possível exces-
so da proteção dos menores devidamente representados contra a
prescrição; 4. O problema da desproteção dos relativamente
incapazes contra a prescrição; 5. Unicidade da interrupção e o
problema da inserção da prescrição intercorrente no Código Civil.
Introdução: prescrição extintiva no Código Civil de 2002
Será verdade que o direito penaliza aos que dormem? De
acordo com a civilística tradicional, o adágio latino vigilantibus,
non dormientibus, sucurrit ius traduziria o papel fundamental
atribuído ao instituto da prescrição extintiva: punir a inércia do
titular de um direito.2 Tão antiga parece ser essa ideia que a dou-
trina contemporânea já tem posto em dúvida sua adequação. Se-
ria, de fato, a inércia do titular a razão de ser da prescrição? E
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1 Doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto de Direito Civil da Faculdade de
Direito da UERJ. O autor agradece ao Prof. Rodrigo da Guia Silva pela
cuidadosa revisão crítica dos originais e pela valiosa reflexão conjunta sobre
tantas inquietações em comum em torno dos temas ora abordados.
2 Por todos, cf. DANTAS, Francisco Clementino de San Tiago. Programa
de direito civil, vol. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001 [1977], p. 342.
mais ainda: seria essa inércia sempre punível? Eminentes vozes
já se insurgiram, no direito brasileiro e alhures, contra tal con-
cepção, reconhecendo como arcaicas as construções que veem
na prescrição uma sanção civil e destacando que a simples inér-
cia no exercício de um direito não pode ser reputada antijurídi-
ca.3 Afirma-se, por exemplo, que, fosse a punição do titular do
direito o real fundamento da prescrição, o reconhecimento do
crédito pelo titular do dever jamais teria o poder de interromper
o prazo prescricional.4 Aduz-se, ainda, que a regra da unicidade
da interrupção da prescrição seria incompatível com a perspec-
tiva punitivista, na medida em que despreza a diligência do titu-
lar do direito que realiza sucessivos atos de cobrança.5 Por toda
parte, a ideia de castigo ao titular omisso do direito tem cedido
espaço a um gradual enfraquecimento da tutela da situação jurí-
dica com o passar do tempo – mais condizente, aliás, com a pró-
pria literalidade do brocardo latino, que, sem cogitar da repre-
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3 Na doutrina italiana, aduz MONATERI: “A teoria da inércia pressuporia
um alcance moralístico que parece estranho ao tratamento científico da
matéria, mesmo porque, se coerentemente assumida, ela colocaria os efeitos
da prescrição entre as sanções civis. Diversamente, tanto o campo da prescri-
ção quanto aquele da decadência ou da nulidade em linguagem sancionatória
(‘sob pena de decadência’, ‘sob pena de nulidade’), refletem agora posições
em desuso, e só podem ser tidos como metáfora de efeitos que não são mais
cientificamente considerados como sanções” (La prescrizione. In: SACCO,
Rodolfo (diretto da). Trattato di diritto civile. La Parte Generale del Diritto
Civile, vol. V. Torino: UTET, 2009, p. 28. Tradução livre). No direito pátrio,
registra Caio Mário da Silva PEREIRA: “nosso direito pré-codificado via [na
prescrição] uma punição ao credor negligente, o que não é de boa juridicida-
de, pois que punível deve ser o comportamento contraveniente à ordem
constituída, e nada comete contra ela aquele que mais não fez do que cruzar
os braços contra os seus próprios interesses” (Instituições de direito civil, vol.
I. Rio de Janeiro: GEN, 2016, p. 572).
4 Com esse argumento, por exemplo, Pier Giuseppe MONATERI afasta
a tese de uma suposta renúncia tácita pelo titular do direito como fundamen-
to da prescrição (La prescrizione, cit., p. 24).
5 Por todos, cf. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; LGOW, Carla Wai-
ner Chalréo. Prescrição extintiva: questões controversas. Revista do Instituto
do Direito Brasileiro, ano 3, n. 3, 2014, p. 1846.
ssão da inércia, propõe apenas deixar de socorrer o titular negli-
gente.
A vetusta tese do escopo punitivo da prescrição oferece mais
de uma possível explicação. A primeira e mais evidente consiste
no fato de o decurso do tempo criar uma clara consequência des-
vantajosa para o titular inerte do direito, sugestiva de um escopo
sancionatório.6 Paralelamente, e não menos importante, coloca-
se um fundamento de ordem sistemática. Como se sabe, o direi-
to civil tem como objeto central o controle valorativo da autono-
mia privada: ao mesmo tempo em que presume a liberdade de
agir dos particulares, submete os atos da vida civil ao crivo axio-
lógico do sistema (como informa o princípio da legalidade na sua
vertente privatista).7 Incumbe ao civilista, portanto, sempre
perquirir quando e quanto certos atos particulares devem ser re-
primidos. Nesses moldes configurou-se o direito civil moderno,
e mesmo o atual ambiente de acentuada funcionalização da au-
tonomia privada à solidariedade social não parece alterar essa
identidade.8 Nessa linha, por muito tempo pareceu natural à
doutrina que também a prescrição decorreria da valoração nega-
tiva de um comportamento privado (a inércia do titular) e da
necessidade de reprimi-lo – muito embora a regra geral no direi-
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6 Embora também implique, sem dúvida, um benefício ao titular do dever
jurídico contraposto, como lembra Menezes CORDEIRO: “No campo do
Direito privado, o interesse do credor será, sempre, o de dispor de um
máximo de pretensões, podendo ordenar no tempo, de acordo com conve-
niências suas, o exercício dos seus direitos. Temos, pois, de assumir que a
prescrição visa, no essencial, tutelar o interesse do devedor: uma orientação
que se comprova, em termos históricos, desde Teodósio II” (Tratado de
direito civil, vol. V. Coimbra: Almedina, 2015, p. 197).
7 Sobre a evolução do princípio da legalidade (previsto pelo art. 5º, II da
CF) em direção ao controle da abusividade e do merecimento de tutela,
permita-se a remissão a SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tute-
la: a nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de Direito Privado,
vol. 58. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun./2014, passim.
8 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 341-342.

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