Desafios à garantia do trabalho digno de cuidado remunerado, a partir de uma perspectiva de raça e gênero

AutorRaquel Leite da Silva Santana
Ocupação do AutorMestre em Direito, Estado e Constituição, na sublinha de pesquisa Internacionalização, Sustentabilidade e Trabalho, pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq). Advogada trabalhista
Páginas319-335
CAPÍTULO 21
(1) Mestre em Direito, Estado e Constituição, na sublinha de pesquisa Internacionalização, Sustentabilidade e Trabalho, pela Universidade de
Brasília (UnB). Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB/CNPq). Advogada trabalhista.
(2) As reflexões trabalhadas neste artigo integram a dissertação de mestrado da autora, ainda no prelo.
(3) BRASIL, Ministério do Trabalho, Conheça as profissões que mais avançaram no Brasil, disponível em:
-conheca-as-profissoes-que-mais-avancaram-no-brasil>. Acesso em: 19 nov. 2019.
Desafios à Garantia do Trabalho Digno de Cuidado
Remunerado, a partir de uma Perspectiva de Raça e Gênero
RAQUEL LEITE DA SILVA SANTANA
(1)
Resumo: Nesta pesquisa, trabalha-se com a hipótese de que a ausência de regulamentação jurídica específica que abarque a
multidimensionalidade do trabalho de cuidado remunerado, assim como o seu exercício historicamente por mulheres negras
contribuem para que o trabalho de cuidado remunerado encontre desafios para ser exercido em condições dignas. Para tanto,
são revistados os estudos de gênero, raça e trabalho, bem como se propõe uma análise dogmática jurídica da classificação de
empregada doméstica (LC n.150/2015), além da ocupação de cuidadora, disponível pela Classificação Brasileira de Ocupação
(CBO). Concluiu-se que a regulamentação deste trabalho, por meio da profissionalização, é representativa das possibilidades de
maior proteção jurídica à categoria e, assim, de maior acesso ao trabalho digno, o que pressupõe, igualmente, o olhar sistemático
da questão a partir da consideração da raça como elemento estruturante do trabalho de cuidado remunerado.
Palavras-chave: Trabalho digno. Trabalho de cuidado remunerado. Gênero. Raça.
Abstract: In this research, it is used the hypothesis that the absence of specific legal regulation that encompasses the multidi-
mensionality of paid care work, as well as its exercise historically by black women, contributes to the fact that paid care work faces
challenges to be exercised in dignified conditions. With this objeticve, studies of gender, race and work are reviewed, as well as a
dogmatic legal analysis of the classification of domestic workers (LC 150/2015), as well as the occupation of care worker, available
by the CBO. It is concluded that the regulation of this work, through professionalization, is representative of the possibilities of
greater legal protection to the category and, thus, of greater access to worthy work, which also presupposes the systematic look
of the issue from the consideration of race as a structuring element of care work.
Keywords: Worthy work. Care work. Gender. Race.
1. NTRODUÇÃO(2)
As informações disponibilizadas pela Relação
Anual de Informação Sociais (RAIS) do Ministério do
Trabalho, divulgadas no início de 2019, demonstram
que a ocupação de cuidador(a) de idosos teve um
aumento de 547% entre 2007 e 2017, passando de
5.263 cuidadores e cuidadoras em 2007 para 34.051,
em 2017, do quais 85% são mulheres com o ensino
médio completo(3).
A referida ocupação é disparadamente a que apre-
sentou maior crescimento no período analisado. Em se-
gundo lugar consta a ocupação de professor de nível su-
perior na educação infantil, que registrou um aumento
de 398%, saltando de 8.513 trabalhadores(as) em 2007
para 42.391 em 2017 e, em terceiro, os preparadores(as)
físicos, com um crescimento de 327%, saindo de 6.932
trabalhadores (as) em 2007 para 20.952 em 2017.
Essa pequena amostra proporciona a delimitação
de algumas das premissas enfrentadas neste artigo.
A primeira delas é a de que o trabalho de cuidado re-
munerado, seja ele diretamente prestado a idosos ou
a outras pessoas – como se verá neste trabalho–, é
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Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. II
Gabriela Neves Delgado
majoritariamente realizado por mulheres, razão pela
qual o gênero relacionado a esta ocupação é bem de-
finido no Brasil.
A ausência de desagregação da amostra por raça
também suscita outra lacuna importante sobre o traba-
lho de cuidado remunerado no Brasil, que é preenchido
pela doutrina trabalhada na pesquisa, qual seja, a de
que este trabalho é majoritariamente desempenhado
especificamente por mulheres negras.
A segunda premissa pode ser desenhada a partir da
problematização acerca da proteção jurídica conferida
pelo Estado a essas trabalhadoras, considerando-se
que o trabalho de cuidado no Brasil é uma ocupação
e não propriamente uma profissão. Assim, o enquadra-
mento jurídico das cuidadoras é sempre remetido à Lei
Complementar n.150/2015, que, a seu turno, desconsi-
dera a multidimensionalidade do trabalho de cuidado
e, consequentemente, deixa ao arbítrio do empregador
definir a quantidade de atividades a serem desempe-
nhadas por essas trabalhadoras, que podem ser com-
pelidas, com chancela legal, a cuidar concomitante-
mente de crianças, idosos, pessoas com deficiência e
dos afazeres domésticos.
À tal circunstância corrobora o contexto social das
relações trabalhistas desencadeadas em torno do tra-
balho realizado pelas cuidadoras, que é marcado pela
precariedade, informalidade e baixa valorização social,
características centrais dos trabalhos realizadas por
mulheres negras no Brasil(4).
Diante disso, tendo-se como paradigma o Estado
Democrático de Direito e, conseguintemente, a noção
de que “o trabalho valorizado pelo texto constitucional
é o trabalho digno”(5), parte-se da seguinte hipótese:
a ausência de regulamentação jurídica específica que
abarque a multidimensionalidade do trabalho de cui-
dado remunerado, assim como o seu exercício prepon-
derante pelas mulheres negras contribuem para que o
trabalho de cuidado remunerado seja representativo
no cenário brasileiro das relações trabalhistas precá-
rias, desvalorizadas e comumente realizadas na infor-
malidade– o que, portanto, dificulta seu exercício em
condições dignas.
Para tanto, em primeiro lugar, será demonstrado
que os trabalhos de cuidado, mesmo quando remu-
nerados são comumente classificados como não pro-
dutivos pela legislação trabalhista brasileira, figurando
(4) GONZALEZ, Lélia, A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica, In: UNIÃO DOS COLETIVOS PAN-AFRICANIS-
TAS (UCLA) (Org.), Lélia Gonzalez– Primavera para as rosas negras, 1.ed. [s.l.]: Diáspora Africana, [s.d.], p.34-53.
(5) DELGADO, Gabriel Neves, Direito Fundamental ao trabalho digno, São Paulo: LTr Editora Ltda, 2006, p.209.
(6) DELGADO, Mauricío Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14. São Paulo: LTr, 2019. p.440.
como “modalidade especial”(6) de emprego nas relações
trabalhistas clássicas.
Com a finalidade de contribuir para uma perspec-
tiva crítica acerca da interpretação jurídica conferida
pelo Direito do Trabalho para o trabalho de cuidado, ele
será localizado nos estudos sociológicos de gênero e
trabalho, que postulam a existência uma divisão sexual
do trabalho na sociedade. Por meio desta perspectiva,
critica-se a posição marxista clássica, que desconsidera
o caráter “produtivo” dos trabalhos de cuidado, eis que
essenciais à manutenção de toda a sociedade– o que
justifica a inclusão deste trabalho no rol de trabalhos
produtivos brasileiros.
Para confirmar ou refutar a hipótese de pesquisa,
em primeiro lugar, será demonstrado como os trabalhos
considerados femininos são historicamente desvalori-
zados, agregando-se a esta perspectiva os estudos so-
bre as relações raciais, por meio dos quais se procurará
compreender a baixa valorização social do trabalho de
cuidado remunerado e, assim, os desafios de se garantir
a efetividade do trabalho digno às cuidadoras, conside-
rando-se como premissa central que o trabalho de cui-
dado é majoritariamente realizado por mulheres negras.
Essa leitura crítica subsidiará a discussão sobre a
menor propensão de valorização e proteção jurídica
dos trabalhos realizados por mulheres negras– o que
permitirá, em definitivo, validar ou afastar a hipótese
mencionada.
Além disso, será explorada a multidimensionali-
dade dos conceitos de cuidado e de trabalho de cui-
dado remunerado em domicílio, o que culminará na
investigação das distinções fáticas e jurídicas entre as
trabalhadoras do cuidado (empregadas domésticas e
cuidadoras). Esta análise será feita por meio da apre-
ciação sistemática do enquadramento jurídico dado
às empregadas domésticas pela Lei Complementar
n. 150/2015, bem como pelas descrições oferecidas
pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), no
que se refere às cuidadoras.
Por último, serão examinadas as discussões trava-
das pelo Legislativo, na tentativa de regulamentação
da profissão de “Cuidador de Pessoa Idosa, Cuidador
Infantil, Cuidador de Pessoa Portadora de Deficiência
e Cuidador de Pessoa Portadora de Doença Rara. (Pro-
jeto de Lei n.PL n.1.385/2007, de iniciativa da Câmara
dos Deputados), por meio do qual se discutirá a abertu-

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