Quando violações à dignidade humana se tornam 'modelo de negócio': o caso dos trabalhadores em frigoríficos e as respostas jurisdicionais do estado-protetor

AutorMaria Cristina Cardoso Pereira
Ocupação do AutorDoutora em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)
Páginas127-143
CAPÍTULO 8
(1) Doutora em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Doutora em Ciências Sociais pelo IFCH
da Universidade de Campinas (UNICAMP). Pós-Doutora em Ciências Sociais Aplicadas pela Unicamp. Mestra em Sociologia pela Unicamp.
Bacharel em Direito pela PUC-SP. Bacharel em História pela PUC-SP. Pesquisadora integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição
e Cidadania (UnB/CNPq). Atualmente é professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí– UFJ, em Goiás. Agradeço
especialmente a César Augusto Mendes pela discussão sobre o conteúdo de tabelas e gráficos.
Quando Violações à Dignidade Humana
se Tornam “Modelo de Negócio”:
O Caso dos Trabalhadores em Frigoríficos e as
Respostas Jurisdicionais do Estado-Protetor
MARIA CRISTINA CARDOSO PEREIRA
(1)
Resumo: O artigo pretende analisar as respostas jurisdicionais oferecidas pelo Estado-protetor em situações em que ocorre ofensa
à dignidade da pessoa humana. Dignidade é entendida como um conjunto de elementos que formam não apenas as condições
existenciais mínimas para uma participação autônoma em sociedade, mas também como condição de liberdade para a existência
humana. O caso analisado será o de trabalhadores em frigoríficos (abate, corte e processamento de aves, carnes e suínos) a partir
de um diagnóstico de dados previdenciários e sociais sobre morte, acidentalidade, letalidade e incapacitação entre 2009 e 2017.
Palavras-chave: Acidentalidade laboral. Frigorífico. Dignidade da pessoa humana. TST. Constituição.
Abstract: The article aims to analyze the jurisdictional responses offered by the Protector State in situations where the dignity of
the human person is offended. Dignity is understood as a set of elements that form not only the minimum existential conditions
for autonomous participation in society but is also the condition of a free human existence. The case analyzed will be workers
in slaughterhouses (slaughtering, cutting and processing of poultry, meat, and pork) from a set of information and diagnosis ac-
cessed on social security data on death, accidents, lethality and disability between 2009 and 2017.
Keywords: Work accident. Meat packing industry. Dignity of human beings. Supreme Labor Court. Constitution.
1. INTRODUÇÃO
O sofrimento não é uma dimensão inerente e ne-
cessária ao conceito de trabalho. Nada sugere que a
atividade de transformar a natureza leve a marca inde-
lével do adoecimento, padecimento e morte do traba-
lhador. Entretanto, quando observadas as estatísticas
de acidentes do trabalho no Brasil em geral– e em re-
lação aos trabalhadores em frigoríficos em particular–
os sinais parecem se inverter. Os acidentes e doenças
relacionados com o trabalho proliferam a ponto de se
tornarem parte intrínseca do “modelo de negócios” do
setor de frigoríficos.
A solução para tal estado de coisas não é simples e
perpassa pela necessidade de elaboração de diagnós-
ticos interdisciplinares. Em especial, a ciência do Direito
vem se dedicando a abordar o tema do adoecimento
sob uma perspectiva que incorpore um telos ético, cujo
epicentro localiza-se na pauta de valores estabeleci-
dos pela Constituição Federal de 1988. Ao aspirar um
efetivo Estado Democrático de Direito, a Carta Magna
fixou direitos que orbitam em torno da exigência de
uma existência digna– que depende, sumariamente,
de uma vida do trabalho igualmente digna e virtuosa.
A esse preceito submetem-se todas as atividades– in-
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Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. II
Gabriela Neves Delgado
clusive as econômicas– assim como se vincula o Estado
na tarefa de vigiar para que a pauta constitucional não
seja usurpada.
Este artigo debruça-se sobre o setor de frigorífico
no Brasil: os indicadores de acidentalidade e as respos-
tas jurisdicionais produzidas pelo Estado-protetor. Seu
ponto de partida foi a tese de doutorado defendida
pela autora em 2016 junto ao Programa de Doutorado
em Direito, Estado e Constituição da Universidade de
Brasília, sob a orientação da profa. Dra. Gabriela Neves
Delgado(2). Trata-se, aqui, de uma versão atualizada de
questões levantadas na tese, com indicadores recolhi-
dos até dezembro de 2019.
O artigo desdobra-se em cinco itens. No primeiro
e segundo busca-se analisar a moldura constitucional
estabelecida pela Constituição de 1988 que diz respei-
to à dignidade da pessoa humana. Ali será debatida a
maneira como a CF modificou a compreensão do sig-
nificado de violações sistemáticas ao trabalhador que
redundam em sofrimento, incapacitação ou morte. No
terceiro e quarto item estão organizados em tabelas e
gráficos os dados e estatísticas mais recentes sofre aci-
dentalidade– englobados aqui, além da acidentalidade
propriamente dita, o adoecimento, letalidade e morte
no setor de frigoríficos. Esses dados estão atualizados
até 2018 e foram elaborados a partir de bases coletadas
junto à Secretaria de Previdência do Ministério da Eco-
nomia, via Lei de Acesso à Informação, bancos de da-
dos RAIS-CAGED, DIEESE, Observatório de Saúde e Se-
gurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho
(plataforma Smartlab), Tribunal Superior do Trabalho e
FUNDACENTRO. No último item serão analisadas as res-
postas jurisdicionais oferecidas pelo Tribunal Superior
do Trabalho acerca da acidentalidade, adoecimento e
letalidade no setor. Ao final, o artigo tece considerações
sobre perspectivas para que o Estado-protetor, através
de sua atividade jurisdicional, confira maior eficácia à
pauta valorativa humanista e democrática, consoante
2. A PERSPECTIVA TRADICIONAL ACERCA DO
ADOECIMENTO E ACIDENTALIDADE
contexto de retomada da pauta social e de participa-
ção democrática, refletiu o consenso social formado na
Assembleia Nacional Constituinte e que conferiu forma
(2) PEREIRA, Maria Cristina Cardoso. A carne está servida: análise de argumentações jurisdicionais do TST sobre trabalhadores do setor frigorífico
na perspectiva gramsciana. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição, da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasília como requisito para a obtenção do título de doutora. Brasília, 2016.
institucional ao nosso Estado Democrático de Direito.
Tal consenso se traduziu em um extenso rol de direi-
tos sociais fundamentais dos trabalhadores, arrolados
predominantemente no art.7º da Constituição Federal
em associação com os desígnios do art.1º, III, e art.3º, I,
em que se afirma uma sociedade livre, justa e solidária,
sob a premissa da dignidade da pessoa humana, e do
art.5º, V e X, que estabelece que a higidez física, men-
tal e emocional do ser humano são bens fundamentais
em sua vida privada e pública, indissociáveis de sua
intimidade, autoestima e afirmação social. O art.225,
caput, da Constituição Federal de 1988, menciona ex-
pressamente o direito a um meio ambiente do trabalho
equilibrado. Tais garantias foram elevadas à condição
de direitos fundamentais, de maneira que receberam
proteção especial do legislador constituinte.
Essa nova perspectiva estabeleceu marcos que
afetaram a maneira como situações de acidentalidade
passaram a ser avaliadas pelos Tribunais.
Na seara trabalhista, a sinalização jurisprudencial
até a Constituição Federal de 1988 consistia no enten-
dimento de que uma ação regulatória mais geral so-
bre as condições de trabalho de determinado grupo
econômico ou categoria ofenderia a livre negociação
entre as partes. Predominava a compreensão de que
o “estado de saúde” do trabalhador era o contrário ao
“estado de doença”, além de um entendimento bas-
tante restrito das condicionantes do Código Civil no
que dizia respeito à exigência de culpa, dano, nexo de
causalidade e ato ilícito para que se caracterizasse a
responsabilidade civil do causador do dano– no caso,
o empregador ou tomador de serviço. Equivalia-se o
dano às sequelas físicas evidentes e imediatas. O tra-
balhador era alçado, assim, à condição de uma “má-
quina” que, eventualmente, pudesse ter uma peça ou
engrenagem funcionando defeituosamente por causa
das suas condições de trabalho ou pelo seu desgaste
“natural”. Uma vez reparada a peça, entendia-se que a
máquina, ou o trabalhador, poderia voltar a gozar de
sua vida com a integridade de outrora, como se fosse
natural à força de trabalho submeter-se a incapacida-
des laborais sistemáticas ao longo da vida– e a dor e
o sofrimento, por si, não se apresentassem como um
dano inadmissível.
De acordo com esse modelo, entendia-se que a
identificação dos danos ocorria de maneira isolada e
sua reparação dependia de provocação da justiça. Um

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