O idoso com demência senil ou deficiente mental na relação jurídica médico-paciente: consentimento informado e responsabilidade civil

AutorDébora Gozzo e Juliano Ralo Monteiro
Ocupação do AutorPós-doutora pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht, Hamburgo/Alemanha/Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas79-110
O IDOSO COM DEMÊNCIA SENIL OU
DEFICIENTE MENTAL NA RELAÇÃO JURÍDICA
MÉDICO-PACIENTE: CONSENTIMENTO
INFORMADO E RESPONSABILIDADE CIVIL
Débora Gozzo
Pós-doutora pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht,
Hamburgo/Alemanha. Doutora em Direito pela Universidade de Bremen/Alemanha.
Mestre em Direito pela Universidade de Münster/Alemanha e pela Universidade de
São Paulo. Ex-bolsista da Alexander von Humboldt- Stiftung. Professora Titular de
Direito Civil da USJT. Ex-Professora Titular do Mestrado em Direito e da Graduação
do UNIFIEO. Professora Colaboradora do Mestrado em Ciência do Envelhecimento da
Universidade São Judas Tadeu/SP; Coordenadora do Núcleo de Biodireito e Bioética
da ESA-OAB/SP. Visiting Professor do Institut für Deutsches, Europäisches und interna-
tionales Medizinrecht, Gesundheitsrecht und Bioethik der Universitäten Heidelberg
und Mannheim, Mannheim/Alemanha. Fellow do Käte-Hamburger-Kolleg (Center for
Advanced Studies in the Humanities) da Universidade de Bonn/Alemanha. Visiting
professor do Referenzzentrum für Bioethik in den Biowissenschaften, da Universidade
de Bonn/Alemanha. Visiting professor da Bucerius Law School/Alemanha. Membro
do IBERC; da Rede de Direito Civil Contemporâneo; do Instituto de Direito Privado.
Coordenadora da Comissão de Direitos Fundamentais do IASP. Líder do Grupo de
Pesquisa Inovações Tecnológicas e Direito pela USJT. E-mail: deboragozzo@gmail.com.
Juliano Ralo Monteiro
Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente
é Coordenador do Curso de Direito da Universidade Nilton Lins; Professor Adjunto da
Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas – UFAM
(FD-UFAM); Professor Permanente do Programa de Mestrado da FD-UFAM; Líder do
Grupo de Pesquisa Direito Civil Contemporâneo na Amazônia pela FD-UFAM; Professor
Adjunto da Faculdade Martha Falcão|Wyden. Membro da Rede de Direito Civil Contem-
porâneo. Associado ao Instituto de Direito Privado. Associado ao Instituto Brasileiro de
Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Advogado. E-mail: ralojuliano@gmail.com.
Sumário: 1. Introdução – 2. A Lei n. 10.741/2003 e a vulnerabilidade da pessoa idosa – 3.
Idoso com demência senil, o Idoso deciente mental e o Estatuto da Pessoa com Deciência
– 4. Relação médico-paciente: Código de Ética Médica e Código de Defesa do Consumidor
– 5. Consentimento Informado e Princípio da Transparência; 5.1 A informação na relação
médico-paciente e os padrões de divulgação médica; 5.2 O consentimento e sua obtenção
– 6. O consentimento informado do idoso com demência senil ou deciente mental – 7.
Responsabilidade do médico frente o idoso deciente ou com demência senil pela ausência
do consentimento informado – 8. Conclusão – 9. Referências
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1. INTRODUÇÃO
A cada dia que passa, em razão dos avanços da chamada biotecnologia, cresce
a tendência à longevidade da pessoa. Com isso, aumenta a probabilidade de as so-
ciedades em geral, inclusive a brasileira, tornarem-se locais com predominância de
pessoas idosas. Apesar do estágio atual de desenvolvimento da medicina, com a idade
e, consequentemente com o declínio do corpo e da mente, muitas pessoas podem vir
a estar acometidas por doenças mentais. Estas podem retirar-lhes a possibilidade de
interagirem e de se autodeterminarem como qualquer pessoa que tenha alcançado a
maioridade e responsável por seus atos, independentemente de um representante ou
assistente legal. Eventualmente a def‌iciência mental acompanha essa pessoa ao longo
da vida, resultando muitas vezes em uma mesma situação de incapacidade cognitiva,
como no caso da demência senil.
Para garantir a efetivação do princípio da dignidade humana, previsto no inciso III
do art. 5° da Constituição da República, surgiram no ordenamento jurídico brasileiro não
só o Estatuto do Idoso, em 2003, mas o Estatuto da Pessoa com Def‌iciência, em 2015,
que abarca todas as formas de def‌iciência, inclusive a mental. Procurou, aqui, garantir
que a pessoa def‌iciente não seja discriminada e exerça seus direitos em igualdade de
condições com as demais.
O objetivo do presente artigo é investigar o quanto essa pessoa idosa, em especial
aquela que já alcançou os oitenta (80) anos, e que tem algum tipo de demência ou de
def‌iciência mental, é capaz de exercer sua autonomia existencial, no que diz respeito à
sua saúde e ao seu corpo. Isto tudo, tendo-se como pano de fundo a situação de vulne-
rabilidade que a acomete, porquanto nem sempre é capaz de autodeterminar-se, face às
fragilidades que vivencia. Assim, questiona-se se ela tem capacidade de, numa relação
médico-paciente, prestar seu consentimento informado acerca do tratamento a que
será submetida. A partir disso, e na parte f‌inal, portanto do trabalho, discute-se sobre a
responsabilidade do médico, levando-se em conta o disposto na lei consumerista, em
em vigor desde 1991.
2. A LEI N. 10.741/2003 E A VULNERABILIDADE DA PESSOA IDOSA
Desde 2003, com a entrada em vigor da Lei n. 10.741, o idoso passou a receber
tratamento diferenciado pelo legislador pátrio, da mesma forma que já havia acontecido
com o menor, a partir do momento em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA,
Lei n. 8.069/1990) foi promulgado e entrou em vigor. Desse modo, as duas pontas mais
vulneráveis da vida de uma pessoa, a saber, seu início e seu f‌im, passaram a merecer
proteção integral por parte da legislação pátria. Isto deve ser considerado um verdadeiro
marco na efetivação do livre desenvolvimento da pessoa humana. Todas essas conquistas
só foram possíveis por conta da aprovação pelo Congresso, em 5 de outubro de 1988,
da Constituição da República atualmente em vigor no país. Foi este texto, indubitavel-
mente, que colocou a pessoa humana como centro do ordenamento jurídico, por meio
do estabelecimento do princípio da dignidade humana como um dos pilares da sociedade
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brasileira.1 A introdução do mencionado princípio como um valor foi revolucionário,
pois o país deixava para trás uma ditadura militar de duas décadas (1964-1985), período
durante o qual as liberdades individuais foram solapadas.
O fato de terem sido destacados o início e o f‌im da vida em leis especiais, leva à
conclusão que a sociedade brasileira, na pessoa de seus congressistas, entendeu que
deveria amparar aqueles que apresentam um maior grau de vulnerabilidade frente aos
desaf‌ios da vida.
O legislador pátrio, a partir de 1988, realmente entendeu ser necessário garantir que
determinados grupos de pessoas recebessem proteção mais efetiva por parte da lei, em
razão de sua maior vulnerabilidade.2 No caso da criança e do adolescente, por serem elas
personagens frágeis, mais ainda quando em situação irregular, dependentes que são de
um adulto para cuidar de seus interesses pessoais e patrimoniais. Quanto ao idoso, por
ser ele alguém que necessita, de um arcabouço legal que leve em conta as peculiaridades
relativas às fragilidades do corpo e, eventualmente, da mente, que a idade traz consigo.
Pelo Estatuto do Idoso, toda pessoa acima dos sessenta (60) anos é considerada idosa,
portanto, merecedora de proteção especial da lei.3
Com os avanços da medicina, abre-se a cada dia a possibilidade real de as pesso-
as tornarem-se mais e mais longevas, o que fez com que em 2017, por meio da Lei n.
13.446/2015, fosse introduzido no Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) o parágrafo
2° ao art. 3°. Este artigo disciplina sobre a pessoa que se encontra com oitenta (80) anos
ou mais: “Dentre os idosos, é assegurada prioridade especial aos maiores de oitenta anos,
atendendo-se suas necessidades sempre preferencialmente em relação aos demais ido-
sos.” (Grifos Nossos). Desse modo a lei pátria, sabiamente, fez distinção entre os idosos,
considerando-se aqui aqueles que se encontram entre os sessenta (60) e os oitenta (80)
anos incompletos e, dessa idade para frente como mais idosos, da mesma forma que o
1. Quanto ao princípio da dignidade humana na temática que ora se menciona, Anna Candida da Cunha Ferraz e
Fernando Pavan Baptista, após analisarem-no no contexto relativo ao idoso na Constituição da República vigente,
af‌irmam: “(…) no século XX, cognominado ‘O Século da Terceira Idade’, tratar de modo especial os idosos não
constitui privilégio, nem tratamento discriminatório, mas legítima aplicação dos princípios que inserem a justiça
social como meta e fundamento da democracia brasileira, especialmente os contidos no art. 3° da Constituição,
que, ao estabelecer entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- Constituir uma sociedade
livre, justa e solidária; [...]; IV- promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quais-
quer outras formas de discriminação”. Comentários à Lei n. 10.417/2003, in: CUNHA FERRAZ, Anna Candida.
BAPTISTA, Fernando Pavan. PINTO FILHO, Ariovaldo de Souza. (Org.). Comentários ao art. 2° do Estatuto do
Idoso: Efetivação legislativa, administrativa e jurisprudencial. Osasco: Edif‌ieo, 2015, p. 51.
2. Neste sentido vale a pena trazer a lume a lição de Heloisa Helena Barboza: “Para os f‌ins do Direito, se todas as pes-
soas são vulneráveis, é preciso estar atento a ‘situações substanciais específ‌icas’, para que seja dado o tratamento
adequado a cada uma delas. Não basta, portanto, af‌irmar a vulnerabilidade que têm, por conceito, todas as pessoas
humanas e que se encontram protegidas pela cláusula geral de tutela implícita na Constituição da República. É
indispensável verif‌icar as peculiaridades das diferentes situações de cada grupo, como vem sendo feito com as
crianças e adolescentes, com os consumidores, a partir de 2003 com o idoso, e em data mais recente em relação
à pessoa com def‌iciência. (...).” BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse da pessoa idosa,
efetividade e desaf‌ios, in: BARLETTA, Fabiana R.. ALMEIDA, Vitor. A Tutela Jurídica da Pessoa Idosa. Indaiatuba:
Foco, 2020, p. 14-15.
3. Importante a lição de Patrícia Albino Galvão Pontes: “É objetivo do estatuto conferir proteção integral ao idoso.
Desta maneira, em seu segundo artigo, já demonstra a sua f‌inalidade ao visar que estas pessoas, já tão discriminadas
pela sociedade, quando não pela própria família, tenham os seus direitos, como pessoas que são, assegurados e
resguardados”. PONTES, Patrícia Albino Galvão. Comentários ao art. 2° da Lei n. 10.147/2003, in: PINHEIRO,
Naide Maria. (Coord.). Estatuto do Idoso Comentado. Campinas: LZN, 2003, p. 17.
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