Uma ética para a medicina pós-humana: propostas ético-jurídicas para a mediação das relações entre humanos e robôs na saúde

AutorAna Elisabete Ferreira e André Dias Pereira
Ocupação do AutorAdvogada/Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas1-19
UMA ÉTICA PARA A MEDICINA PÓS-HUMANA:
PROPOSTAS ÉTICO-JURÍDICAS PARA A
MEDIAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE HUMANOS
E ROBÔS NA SAÚDE
Ana Elisabete Ferreira
Advogada, Doutora em Bioética pela Universidade Católica Portuguesa – Cátedra
UNESCO de Bioética. Investigadora do Centro de Direito Biomédico. Investigadora
Colaboradora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coim-
bra. Professora Adjunta convidada do Instituto Politécnico de Beja. Responsável pela
Secção de Direito Civil Médico do Instituto de Derecho Iberoamericano (IDIBE), Asso-
ciada Internacional Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).
Membro da Associação Portuguesa de Teoria do Direito, Filosoa do Direito e Filosoa
Social. Membro da Comissão de Ética Digital dos Serviços Partilhados do Ministério da
Saúde. Membro da World Association for Medical Law, Early Career Award in Medical
Law 2015. Ciência ID: 0313-929C-C9AC – anaelisabeteferreira-54675C@adv.oa.pt.
André Dias Pereira
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Diretor do Centro
de Direito Biomédico;Vice-Presidente da ALDIS (Associação Lusófona do Direito
da Saúde); Investigador Integrado do Instituto Jurídico; Fellow do European Centre of
Tort and Insurance Law;Associado Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de
Responsabilidade Civil (IBERC); Membro do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasi-
leiro;Membro da European Association on Health Law; Membro do Instituto de Derecho
Iberoamericano (IDIBE); Membro da World Association for Medical Law;Membro da
Associação Internacional de Direito Comparado; Presidente da Comissão de Ética da
AIBILI;Membro da Comissão de Ética do Instituto Politécnico de Coimbra; Membro
da Comissão de Ética do INMLCF, I.P.; Membro, eleito pela Assembleia da República,
para o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (2015-2020). Ciência ID:
951E-7E45-3E7F-andreper@fd.uc.pt.
Sumário: 1. Video killed the radio star – 2. Uma transformação radical na Saúde? – 3. Três
problemas normativos fundamentais – 4. Três respostas éticas fundamentais – 5. Os big data
e a nova medicina – 6. Uma Medicina mais personalizada – 7. Conclusão: empatia precisa-
-se! – 8. Referências
1. VIDEO KILLED THE RADIO STAR
“…They took the credit for your second symphony/ Rewritten by machine on new
technology (…)/ Video killed the radio star/ Pictures came and broke your heart…”1.
Música, literatura e cinema, expressões da imanência humana, têm ilustrado de forma
1. “Video Killed The Radio Star”, (Canção de The Buggles), composta por Trevor Horn, Geoff Downes, Bruce Woolley
em 1980 no Reino Unido.
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ANA ELISABETE FERREIRA E ANDRÉ DIAS PEREIRA
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histriónica e casualmente acertada as dif‌iculdades de adaptação dos seres humanos às
revelações tecnológicas – também elas produto da alma humana e do livre desenvolvi-
mento da nossa personalidade – não sem consequências, por vezes graves, na sedimen-
tação de um pensamento objetivo e razoável vocacionado para o futuro. O futuro, sendo
a direção única e inevitável de todas as coisas, é simultaneamente um inconhecível e
um dever: inconhecível, porque toda a conjetura a seu respeito se baseia forçosamente
numa perspetiva fraturada das coisas, onde o futuro em si mesmo está inevitavelmente
ausente; um dever, porque a sua inevitabilidade se impõe e importa um compromisso
inilidível. Como o pensamento valorativo não tem nem deve ter obrigações de utilidade
e aplicabilidade estrita, o futuro é uma empresa de pensamento deliciosa e inesgotável,
que não deixa de se apresentar como uma obrigação quase missionária – pensar sobre o
futuro, ainda que erradamente, é necessário e alguém tem de o fazer.
O presente artigo, porém, nada arriscará sobre o futuro da medicina, focando-se
somente no presente – que é o mesmo que dizer, já no passado.
Não é de hoje que o caráter sinfónico intrínseco da medicina vem sendo denun-
ciado: a tão propalada passagem da medicina como arte à medicina como técnica atra-
vessou séculos até aqui. Já ninguém crê, nem admite, o médico como feiticeiro ou o
tratamento como magia. A pauta da medicina é hoje a da rastreabilidade e o acaso é uma
variável cada vez mais desprezada, quer porque o pensamento teórico sobre a cura se
tornou profundamente positivista, quer porque o cidadão autónomo e medianamente
informado interiorizou perfeitamente que quem o trata não lhe está a fazer um favor. A
personalização e a centralização no doente, nas suas várias vertentes, mais não são do
que manifestações extremas da pauta da rastreabilidade que rege a sinfonia atual. As
máquinas, sem surpresa, são o instrumento fundamental de um toque rastreável, e os
humanos, em particular os médicos e os doentes, colocaram-nas no centro de tudo, mal
se permitindo tomar quaisquer decisões relevantes sem a sua mediação. Há muito que
a relação médico-doente não é uma relação a dois, porque o fundamental dessa relação
de cuidado – a conf‌iança – já tem a mediação das máquinas (de registo, de auxílio, de
rastreio, de diagnóstico, etc.) há muito tempo e em quase 100% das intervenções, minor
ou major. Portanto, e como dizíamos, tudo isto é presente e não futuro.
Sendo sinceros, as máquinas têm trazido incomensuráveis vantagens e desvantagens
pouco signif‌icativas. Quase todos os problemas assacados ao uso de máquinas não têm,
na verdade, relação com as máquinas, mas com a sua gestão, que é humana. Contudo,
as máquinas, em qualquer cenário, têm uma limitação fundamental que é especialmen-
te importante no campo da medicina: o denominado feedback háptico, que se refere à
sensação de toque ou informação cinestésica que o médico ou o cirurgião experienciam
ao contactar por si mesmos com os tecidos. Esta sensação é de extrema importância em
muitos procedimentos médicos, porque “permite identif‌icar alterações na consistência
e elasticidade dos tecidos, permite um maior cuidado na manipulação dos mesmos e na
força que necessita de exercer a removê-los ou suturá-los”2 e permite também testar o
grau de dor ou resistência do paciente em circunstâncias específ‌icas.
2. MATOS, Hugo, Cirurgia Robótica em ORL – uma abordagem ao sistema «Da Vinci», 2017, p. 15, Lisboa, FMUL,
disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/31371/1/HugoAAMatos.pdf.
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