Relações de trabalho lato sensu

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas377-427
CAPÍTULO X
RELAÇÕES DE TRABALHO LATO SENSU
I. INTRODUÇÃO
A relação empregatícia e a gura do empregado surgem como resultado
da combinação, em certo contexto sociojurídico, dos cinco elementos
fático-jurídicos já examinados.
Há, porém, outras relações de trabalho gestadas na dinâmica social
muito próximas, do ponto de vista jurídico e social, à relação empregatícia,
mas que com ela não se confundem. A diferenciação entre elas, às vezes,
pode ensejar pesquisa fático-teórica tormentosa.
Em um primeiro plano, há um vínculo jurídico que, apesar de contar,
do ponto de vista prático, com os elementos con guradores da relação de
emprego, recebe da ordem jurídica uma excludente legal absoluta, que
inviabiliza o contrato empregatício — trata-se da natureza pública da relação
jurídica formada. É o que se passa com os servidores administrativos das
entidades estatais de Direito Público.
Em um segundo plano, há outra relação jurídica, de natureza efetivamente
privada, que também pode contar com os elementos integrantes da relação
de emprego, mas sem se enquadrar no tipo legal da CLT. É o que ocorre
com o estágio, desde que regularmente celebrado e praticado. Ressalte-se,
entretanto, que não se está, aqui, mais diante de excludente legal absoluta
(como ocorrido acima), porém, essencialmente, apenas de uma presunção
legal favorável ao estágio.
Neste plano, há outra relação jurídica que parece concorrer, do ponto
de vista jurídico, com a relação de emprego — embora essa concorrência
seja mais aparente do que verdadeira. Trata-se das situações envolventes
a trabalhadores prestadores de serviço de cooperativas de mão de obra (ou
cooperativas de trabalho, segundo a terminologia seguida pela Lei n. 12.690,
de 2012). Também aqui não se está, de nitivamente, perante uma excludente
legal de relação de emprego.
Em outro plano, há diversas outras relações sociojurídicas que se diferen-
ciam da relação de emprego em vista da falta de um ou alguns dos elementos
fático-jurídicos componentes do tipo legal especi cado no caput dos arts. 2º e 3º
da CLT. É o que acontece, ilustrativamente, com as relações trabalhistas autôno-
mas, eventuais e avulsas, sem se falar em outros vínculos também fronteiriços
ao regulado pela CLT (representante comercial ou agente, motorista carreteiro
proprietário de seu próprio veículo, motorista de táxi, etc.).
378 M樋弼膝眉備眉疋 G疋尾眉匹琵疋 D微柊毘樋尾疋
Todos esses casos de relação de trabalho lato sensu são mais ou menos
próximos da relação empregatícia; todos esses trabalhadores lato sensu
tangenciam a gura jurídica do empregado. Mas, inquestionavelmente, todos
eles, para o Direito, formam guras sociojurídicas distintas da empregatícia,
com regras, institutos e princípios jurídicos diferenciados regendo sua
situação concreta (desde que lhes falte, é claro, realmente, pelo menos um
dos elementos do vínculo empregatício).
Cabe, portanto, ao intérprete e aplicador do Direito, reconhecendo os
elementos de aproximação entre as guras comparadas, hábeis a situá-las
em um mesmo gênero conceitual (o do trabalho humano prestado a outrem,
onerosamente), identi car-lhes, ao mesmo tempo, a diferença especí ca, de
modo a poder situar, sem equívocos, seu correto posicionamento no universo
normativo existente(1).
Presunção Jurídica — No Direito brasileiro existe sedimentada presun-
ção de ser empregatício o vínculo jurídico formado — regido pela CLT, portanto
—, desde que seja incontroversa a prestação de serviços por uma pessoa
natural a alguém (Súmula 212, TST — editada em 1985). Essa presunção jurí-
dica relativa (não absoluta, esclareça-se) é clássica ao Direito do Trabalho, em
geral, resultando de dois fatores historicamente incontestáveis: a circunstância
de ser a relação de emprego a regra geral de conexão dos trabalhadores ao
sistema socioeconômico capitalista; a circunstância de a relação de emprego,
desde o surgimento do Direito do Trabalho, ter se tornado a fórmula mais favo-
rável e protegida de inserção da pessoa humana trabalhadora na competitiva
e excludente economia contemporânea.
No Brasil, desponta a singularidade de esta antiga presunção jurídica ter
sido incorporada, de certo modo, até mesmo pela Constituição da República de
1988, ao reconhecer, no vínculo empregatício, um dos principais e mais e cazes
instrumentos de realização de notável bloco de seus princípios cardeais, tais
como o da dignidade do ser humano, o da centralidade da pessoa humana
na ordem jurídica e na vida socioeconômica, o da valorização do trabalho e
do emprego, o da inviolabilidade física e psíquica da pessoa humana, o da
igualdade em sentido substancial, o da justiça social, o do bem-estar individual
e social, o da segurança e o da subordinação da propriedade à sua função
socioambiental. Com sabedoria, a Constituição percebeu que não se criou,
na História do Capitalismo, nessa direção inclusiva, fórmula tão e caz, larga,
abrangente e democrática quanto a estruturada na relação de emprego.
Convergindo inúmeros preceitos constitucionais para o estímulo,
proteção e elogio à relação de emprego (ilustrativamente: Preâmbulo; art. 1º,
III e IV; art. 3º, I, II, III e IV; art. 5º, caput; art. 6º; art. 7º, caput e seus incisos
(1) É evidente que, no plano prático, diante de alguma das situações fronteiriças acima
mencionadas, o juiz, analisando a prova dos autos, pode, é claro, concluir estar con gurada a
relação de emprego, pela presença de seus cinco elementos componentes.
379C弼膝菱疋 尾微 D眉膝微眉肘疋 尾疋 T膝樋簸樋柊琵疋
e parágrafo único; arts. 8º até 11; art. 170, caput e incisos III, VII e VIII; art.
193, todos do Texto Máximo de 1988), emerge clara a presunção também
constitucional em favor do vínculo empregatício no contexto de existência de
incontroversa prestação de trabalho na vida social e econômica.
II. EXCLUDENTE LEGAL DA FIGURA DO EMPREGADO
— VINCULAÇÃO ADMINISTRATIVA
Há importante situação concreta que evidencia a presença dos cinco
elementos fático-jurídicos da relação de emprego entre trabalhador e tomador
de serviços, sem que haja, juridicamente, esse tipo legal de relação — sem que
haja, portanto, a gura do empregado. Trata-se de situação expressamente
excepcionada pela Constituição (mais do que pela lei, portanto), que elimina
a possibilidade jurídica de existência de relação de emprego, por enfatizar
outro aspecto singular também presente na mesma relação — a vinculação
de natureza administrativa, ao invés de trabalhista, à respectiva entidade
estatal de Direito Público.
Nesse rol, é necessário, entretanto, se diferenciar entre os servidores
regulares e os servidores irregulares.
1. Servidores Administrativos
De fato, o servidor público sob regime administrativo — servidor do tipo
estatutário ou sob regime jurídico único ou ainda sob o vínculo denomina-
do função pública — não se vincula à entidade estatal de Direito Público
pelo caminho da CLT, mas por intermédio de vínculo de natureza realmente
administrativa. Tais trabalhadores lato sensu ostentam vínculo de natureza
pública, sob padrão normativo distinto do vínculo regido pela CLT — distinto
e juridicamente incomparável.
Por essa razão, em face da natureza jurídica própria de seus vínculos (que
é pública), torna-se irrelevante, para ns justrabalhistas, que sejam também
pessoas naturais, prestando serviços com pessoalidade, não eventualidade,
onerosidade e subordinação — não são eles, de nitivamente, empregados(2).
É evidente que não se está falando aqui do servidor celetista, isto é,
aquele contratado por entidade estatal por meio do sistema jurídico da CLT.
Este é empregado, como qualquer outro, tendo como empregador a corres-
pondente pessoa jurídica de Direito Público. Tal situação, aliás, era muito
comum antes de 1988, quando conviviam na administração pública os re-
gimes de natureza estatutária, celetista e, ainda, o regime especial. Com o
(2) Ressalte-se que há argumentos no sentido de que o servidor coloca-se perante a
administração pública com relação de obediência distinta da subordinação.

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