Terceirização trabalhista

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas549-602
CAPÍTULO XIII
TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA
I. INTRODUÇÃO
A expressão terceirização resulta de neologismo oriundo da palavra
terceiro, compreendido como intermediário, interveniente. Não se trata,
seguramente, de terceiro, no sentido jurídico, como aquele que é estranho a
certa relação jurídica entre duas ou mais partes. O neologismo foi construído
pela área de administração de empresas, fora da cultura do Direito, visando
enfatizar a descentralização empresarial de atividades para outrem, um
terceiro à empresa.
Outro neologismo criado para designar o fenômeno (também externo ao
Direito) foi terciarização, referindo-se ao setor terciário da economia, compos-
to pelos serviços em geral, onde se situam as empresas terceirizantes — em
contraponto aos setores primários (agricultura e mineração, por exemplo) e
secundários (segmento industrial, por exemplo) do sistema econômico. Con-
tudo, este epíteto (terciarização) não chegou a se solidi car na identi cação
do fenômeno social, econômico e justrabalhista aqui examinado.
Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se
dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe
seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no proces-
so produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços
justrabalhistas, que se preservam xados com uma entidade interveniente.
A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de for-
ça de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que
realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de
serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, rmando com
ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de
serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clás-
sica de empregadora desse trabalhador envolvido.
O modelo trilateral de relação socioeconômica e jurídica que surge
com o processo terceirizante é francamente distinto do clássico modelo
empregatício, que se funda em relação de caráter essencialmente bilateral.
Essa dissociação entre relação econômica de trabalho ( rmada com a
empresa tomadora) e relação jurídica empregatícia ( rmada com a empresa
550 M樋弼膝眉備眉疋 G疋尾眉匹琵疋 D微柊毘樋尾疋
terceirizante) traz graves desajustes em contraponto aos clássicos objetivos
tutelares e redistributivos que sempre caracterizaram o Direito do Trabalho
ao longo de sua história.
De fato, a terceirização rebaixa o patamar de retribuição material do tra-
balhador em comparação com o colega contratado diretamente pelo tomador
de serviços. Esse rebaixamento envolve não somente o montante remunera-
tório percebido como também o conjunto de vantagens e proteções tradicio-
nalmente conferidas pelo tomador de serviços aos seus empregados diretos,
quer originadas de seu regulamento interno, quer originadas simplesmente
da prática cotidiana empresarial, quer oriundas dos instrumentos negociais
coletivos inerentes às categorias econômica e pro ssional envolvidas (ban-
cos e empregados bancários, respectivamente; empresas metalúrgicas e
empregados metalúrgicos, respectivamente; etc.).
A par disso, a fórmula terceirizante enfraquece a identidade pessoal e
pro ssional do trabalhador, diminuindo, subjetivamente — e mesmo simboli-
camente —, a valorização do trabalho e da pessoa humana trabalhadora no
conjunto da sociedade capitalista.
Se não bastasse, trata-se de ladina fórmula de desorganização
coletiva do segmento pro ssional e social dos trabalhadores, por esvaziar o
conceito de categoria pro ssional, rompendo a linha histórica de conquistas
trabalhistas que inúmeras categorias ostentam ao longo do tempo.
Nesse sentido de ruptura estrutural, a terceirização enfraquece, sobre-
maneira, o sindicalismo, pois pulveriza os interesses comuns dos trabalha-
dores, gerando uma di culdade de identi cação e de fortalecimento sindicais
em torno de seus interesses.
Dessa maneira, por se chocar com a estrutura teórica e normativa ori-
ginal do Direito do Trabalho, essa nova fórmula de contratação trabalhis-
ta tem sofrido restrições da doutrina e jurisprudência justrabalhistas, que
nela tendem a enxergar uma modalidade excetiva de contratação da força
de trabalho. A fórmula também — especialmente se exacerbada — afronta
a matriz humanística e social da Constituição de 1988, em particular os
seus princípios constitucionais do trabalho e os objetivos fundamentais
que elencou para a República Federativa do Brasil, sem contar sua con-
cepção de sociedade civil democrática e inclusiva.(1)
(1) A respeito da Constituição da República e a terceirização trabalhista, consultar, neste Ca-
pítulo XIII, o item II.2 (“Constituição de 1988”). A respeito do conceito de Estado Democrático
de Direito, com a noção de sociedade civil democrática e inclusiva, ler DELGADO, Mauricio
Godinho. Constituição da República, Estado Democrático de Direito e Direito do Trabalho. In
DELGADO, M. G.; DELGADO, G. N. Constituição da República e Direitos Fundamentais
dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2017.
A respeito dos princípios constitucionais do trabalho, consultar DELGADO, Mauricio Godinho.
551C弼膝菱疋 尾微 D眉膝微眉肘疋 尾疋 T膝樋簸樋柊琵疋
Evolução Histórica no Brasil — A terceirização é fenômeno relativa-
mente novo no Direito do Trabalho do País, assumindo clareza estrutural e am-
plitude de dimensão apenas nas últimas três décadas do século XX no Brasil.
Fórmula capturada e disseminada, no Ocidente, pela primeira onda da
construção hegemônica do neoliberalismo, a partir da crise do Estado de
Bem-Estar Social europeu na década de 1970, ela iria se tornar, nos anos
seguintes, um dos veículos mais importantes dessa corrente ideológica, em
seu incessante esforço para desconstruir o Welfare State e os direitos indi-
viduais e sociais trabalhistas a rmados pelo Constitucionalismo Humanista
e Social elaborado, na Europa, logo em seguida ao término da Segunda
Grande Guerra.
Nesse contexto, a CLT — construída na década de 1940 — não tratou,
evidentemente, da terceirização. O diploma consolidado fez menção a ape-
nas duas guras delimitadas de subcontratação de mão de obra: a emprei-
tada e subempreitada (art. 455), englobando também a gura da pequena
empreitada (art. 652, “a”, III, CLT). À época de elaboração da CLT, como se
sabe (anos de 1940), a terceirização não constituía fenômeno com a abran-
gência assumida nos últimos trinta anos do século XX, nem sequer merecia
qualquer epíteto designativo especial.
Afora essas ligeiras menções celetistas (que, hoje, podem ser inter-
pretadas como referências incipientes a algo próximo ao futuro fenômeno
terceirizante), não despontaram outras alusões de destaque à terceirização em
textos legais ou jurisprudenciais das primeiras décadas de evolução do ramo
justrabalhista brasileiro(2). Isso se explica pela circunstância de o fato social
da terceirização não ter tido, efetivamente, grande signi cação socioeconô-
mica nos impulsos de industrialização experimentados pelo País nas distintas
décadas que se seguiram à acentuação industrializante iniciada nos anos
de 1930/40. Mesmo no redirecionamento internacionalizante despontado na
economia nos anos 1950, o modelo básico de organização das relações de
produção manteve-se fundado no vínculo bilateral empregado-empregador,
sem notícia de surgimento signi cativo no mercado privado da tendência à
formação do modelo trilateral terceirizante.
Em ns da década de 1960 e início dos anos 70 é que a ordem jurídica
instituiu referência normativa mais destacada ao fenômeno da terceirização
(ainda não designado por tal epíteto nessa época, esclareça-se). Mesmo
assim tal referência dizia respeito apenas ao segmento público (melhor
Princípios Constitucionais do Trabalho e Princípios de Direito Individual e Coletivo do Traba-
lho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2017, em seu Capítulo II (“Princípios Constitucionais do Trabalho”).
(2) Evidentemente que a legislação civil, à época, já regulamentava a empreitada e a prestação
de serviços, no Código Civil então vigorante, de 1916.

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