1984 No século XXI? Um estudo sobre a (I)legalidade de o estado saber a localização das pessoas por meio do celular

AutorGabriel Oliveira de Aguiar Borges
Páginas137-164
8
1984 NO SÉCULO XXI? UM ESTUDO SOBRE
A (I)LEGALIDADE DE O ESTADO
SABER A LOCALIZAÇÃO DAS PESSOAS
POR MEIO DO CELULAR
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
Sumário: 1. Introdução. 2. A Internet das coisas e a fragilidade do usuário da inteligência arti-
cial. 3. Da privacidade ao direito fundamental à autodeterminação informativa. 4. O mito do
consentimento. 5. Proteção de dados e segurança pública. 6. Considerações nais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Na obra 1984, George Orwell cria uma distopia em que o personagem central, de
nome Winston, se encontra preso na engrenagem totalitária de uma sociedade totalmente
subjugada pelo Estado, onde as pessoas vivem sozinhas, mas fazem tudo coletivamente
e ninguém escapa ao olhar vigilante do chamado Big Brother1.
A ideia de um Estado que controla e sabe absolutamente tudo o que os cidadãos
fazem, onde estão, com quem estão etc. pode parecer assustadora, porém mais próximas
da realidade do que pode parecer.
Há muito tempo, instituições sociais como a Igreja Católica e, posteriormente,
o Estado estiveram associadas ao controle do poder na sociedade e, via de conse-
quência, ao controle do f‌luxo de informações. Tal panorama só se alterou a partir
de meados do século XX, momento a partir do qual o desenvolvimento tecnológico
acarretou a intensif‌icação dos f‌luxos de informação de uma forma até então nunca
vista, o que levou à denominação da sociedade atual como Sociedade da Informação
ou Era da Informação2.
Dentre as consequências dessa intensif‌icação, temos possibilidade de registro
de praticamente todos os atos realizados por meios informatizados, sendo que vários
desses, os quais outrora seriam efêmeros e gerariam consequências apenas imedia-
tas e previsíveis conforme padrões preestabelecidos, começam a tomar forma de
informações armazenadas, abrindo o leque de possibilidades de uso em contextos
diferentes daqueles nos quais foram inicialmente praticados, bem como com dife-
1. ORWELL, George. 1984. Nova York: Harper Perennial, 2014.
2. Cf. LYON, David. The information society: issues and illusions. Cambridge: Polity Press, 1988.
GABRIEL OLIVEIRA DE AGUIAR BORGES
138
rentes f‌inalidades, fugindo, muitas vezes, do poder de previsão e controle de quem
inicialmente os praticou3.
Os dados mais armazenados são aqueles de identif‌icação de seus titulares, que
são fornecidos para uma organização, podendo ser tratados para variados f‌ins. O
perf‌il de um sujeito, do que ele gosta, o que compra, quais suas necessidades, hábitos
e, em alguns casos, até mesmo sua localização e seu perf‌il genético são tão valiosos
que o consumidor, nesse contexto, deixa de ser mero destinatário de informações,
tornando-se a própria fonte delas, o que determina, inclusive, a forma como ele será
abordado e tratado futuramente4.
Assim, representam o conjunto de fato, comunicações e ações concernentes à
pessoa, podendo revelar seus caracteres e conteúdos quanto à personalidade, relações
afetivas e familiares, etnia, circunstâncias físicas, domicílio (físico e eletrônico), acervo
patrimonial, registros telefônicos, preferências políticas ou religiosas e orientação sexual5.
Acerca desse assunto, vale mencionar que estudos empíricos feitos a partir das
eleições presidenciais estadunidenses de 2016 levaram Yochai Benkler, Robert Faris e
Hal Roberts a concluir que os pequenos efeitos documentados na trajetória do mercado
de dados pessoais podem ter efeitos notáveis em pouco tempo. Claro que tais efeitos são
de mensuração extremamente difícil, o que não os torna menos preocupantes, razão
pela qual há que se regular e ser transparente sobre a propaganda política, bem como
criar medidas de prevenção6.
E o perigo é ainda maior quando essas empresas passam a compartilhar esses dados
com o Estado, gerando panorama que, se não controlado a tempo, pode levar a uma
distopia similar àquela criada por Orwell na obra 1984. É justamente esse o objeto do
presente estudo.
Com vistas a conter o avanço da pandemia da COVID-19, países como China, Co-
reia do Sul e Israel acessavam dados como identidade e número de telefone das pessoas
que transitavam pelas ruas. Na China, o Estado adotou uma série de ferramentas, com
base em GPS, antenas de celular, aplicativos e QR Code para determinar a localização
dos cidadãos infectados antes mesmo da conf‌irmação do diagnóstico, proibir pessoas de
entrar em prédios ou transporte público, ou mesmo identif‌icar se alguém em quarentena
desrespeitou as medidas de isolamento7.
Também no Brasil, foi noticiado, pela BBC News que o governo passaria a ter acesso
a dados de operadoras de celulares para identif‌icar aglomerações de pessoas por todo
3. SOUZA, Thiago Pinheiro Vieira de. A evolução da proteção de dados pessoais ao patamar de direito fundamental.
In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.). Estudos essenciais de direito
digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 399.
4. SOUZA, Thiago Pinheiro Vieira de. Op. cit., p. 400.
5. MALTA, Tatiana. O direito à privacidade na sociedade da informação: efetividade desse direito fundamental diante
da tecnologia da informação. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2007, p. 6.
6. BENKLER, Yochai; FARIS, Robert; ROBERTS, Hal. Network Propaganda. Manipulation, Disinformation and
Radicalization in Americam Politics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 381-386.
7. MAGENTA, Matheus. Coronavírus: governo brasileiro vai monitorar celulares para conter pandemia. BBC News
Brasil, Londres, 03 de abril de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52154128. Acesso
em: 20 abr. 2020.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT