A alquimia do século XXI: pirâmides de criptomoedas

AutorMariella Pittari
Páginas191-215
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A ALQUIMIA DO SÉCULO XXI:
PIRÂMIDES DE CRIPTOMOEDAS
Mariella Pittari
Sumário: 1. Introdução. 2. O que é uma criptomoeda. 3. Personagens envolvidos nas pirâmides
de criptomoedas. 4. O tratamento das criptomoedas e suas pirâmides em diferentes jurisdições.
5. O tratamento das pirâmides nanceiras de criptomoedas no Brasil. 6. Conclusão. Referências.
Governments of the Industrial World, you weary giants of esh and steel,
I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future,
I ask you of the past to leave us alone. You are not welcome among us.
You have no sovereignty where we gather.”1
— John Perry Barlow
1. INTRODUÇÃO
Para um dos precursores da sociologia do dinheiro, Georg Simmel, o dinheiro está
atrelado “uma reivindicação sobre a sociedade”,2 uma função da interação social por-
tanto. O modo como as sociedades desenvolvem suas relações de troca e satisfação das
obrigações é de tal modo arraigado que raramente são postos à prova, até que advenha
um abalo de paradigmas a justif‌icar a rediscussão do assunto. A emergência das cripto-
moedas encontra-se indubitavelmente dentre os casos que põem em discussão toda a
dinâmica atinente à criação, controle e distribuição de dinheiro.
As características inovadoras das moedas digitais são atribuídas à presença de uma
tecnologia verif‌icável, automonitorada e autoexecutável, que prescindiria uma autoridade
central ou partes terceiras. Através da diminuição dos custos de transação possibilitada
pela tecnologia de autenticação e verif‌icação ganha-se em ef‌iciência ao atribuir a pro-
priedade ainda que por frações mínimas de tempo. Não obstante o paradoxo, o dinheiro
experimental transforma-se em realidade que passa a fazer parte da infraestrutura f‌i-
nanceira. A China está lançando uma iniciativa sem precedentes, o Blockchain Service
Network, que irá permitir a emissão de criptomoedas através do seu banco central.3 A
1. BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Duke Law & Technology Review, Durham,
v. 18, n. 1, 2019, p. 5-7.
2. FRISBY, David. George Simmel: the philosophy of money. Londres: Routledge, 2004.
3. Sobre pioneirismo em lançar a primeira criptomoeda soberana ver BRAM, B. (2020). Inside China’s mission to create
an all-powerful cryptocurrency. Wired.co.uk. Disponível em: https://www.wired.co.uk/article/china-digital-cur-
rency-crypto, acesso 29 de abril de 2020. No cenário norte-Americano as coordenadas teóricas para a empreitada
e a importância do seu uso para um propósito democrático podem ser encontradas em HOCKETT, Robert. The
democratic digital dollar: A digital savings & payments platform for fully inclusive state, local, and national money
MARIELLA PITTARI
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novidade implica em admitir, mais que um giro, uma verdadeira torção hermenêutica
na compreensão do assunto.
No Brasil, o art. 164 da CF88 estabelece que a competência da União para emitir
moeda é exercida exclusivamente pelo Banco Central, o que a princípio indicaria a exis-
tência de autorização constitucional ao banco central brasileiro em emitir criptomoeda,
fosse o caso em seguir o modelo da China. Porém, tal asserção não supera o verdadeiro
problema que se põe, ao se observar com maior atenção o que signif‌ica um sistema de
DLT (Distributed Ledger Technology), a prescindir a presença de uma autoridade central
tal qual um banco estatal. Assim, a ruptura de paradigmas do DLT (Distributed ledger
technology) adviria da desnecessidade do controle central de uma Instituição Financeira,
Estado, ou quaisquer organogramas que posicionam a autoridade como elemento central
aglutinador de todos os dados atinentes à uma operação ou organização.
Formas emergentes de tratar os dados e preferências humanas na abordagem da
vida ganham contornos até então inimagináveis. Likes e curtidas tornam-se variáveis
intercambiáveis entre af‌inidades sociais e repercussões f‌inanceiras dos perf‌is mais
seguidos. A dimensão do microgerenciamento de vidas humanas e a monetização de
tais relações através de novos instrumentos escapa mesmo aos presságios mais radicais
de 19844.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que a sociedade de controle se expande, assim o
faz também o Wild West cibernético (Wild West cyberspace)5. De um lado sujeitos reduzi-
dos a dados, de outro um ecossistema no qual inexiste ordem. Diante de tal cenário, há
de reconhecer-se a dif‌iculdade em articular um raciocínio consentâneo ao desaf‌io que
se está a enfrentar. Sofre-se da “síndrome das carroças sem cavalos” pois, não obstante a
presença da linguagem algorítmica, faltam as estruturas que permitem à plena compre-
ensão do alcance da novidade6.
Quando a mudança de paradigma subverte as categorias criadas até então para alocar
os fenômenos, impõe-se a criação de novas categorias e a revisita de todas as outras que
existiam até então. A sociedade disciplinar é paulatinamente substituída pela sociedade
de controle, porém não comandada por leis, mas por códigos, como já antevia Deleuze:
A linguagem numérica de o controle é feito de códigos que marcam o acesso à informação ou a rejeitam.
Não nos encontramos mais lidando com o par massa/indivíduo. Os indivíduos se tornaram ‘divisos’ e as
massas, amostras, dados, mercados ou ‘bancos’. Talvez seja o dinheiro que expressa a melhor distinção
entre as duas sociedades, uma vez que a disciplina sempre remetido ao dinheiro cunhado que trava o
& banking systems. Harvard Business Law Review, Cambridge, Online, v. 10, 2020. Disponível em: https://bit.
ly/3992uFH. Acesso em: 25 abr. 2020.
4. ORWELL, George. Nineteen Eighty-four. Nova York: Houghton Miff‌lin Harcourt, 1983.
5. LOOK, Jeffrey J. The Virtual Wild, Wild West (www): Intellectual Property issues in cyberspace-trademarks,
service marks, copyrights, and domain names. University of Arkansas at Little Rock Law Review, Little Rock, v. 22,
n. 1, p. 49-89, 1999.
6. ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: The f‌ight for a human future at the new frontier of power.
Nova York: Public Affairs, 2019, p. 20. A expressão “horseless carriage syndrome” faz expressa referência às dif‌i-
culdades encontradas em conferir sentido à uma carroça movimentada a motor, ou seja, o que hoje absolutamente
compreendemos quando falamos de carros. Ver também MURRAY, Turoff, and HILTZ, Roxanne Starr. “Supercon-
nectivity.” Communications of the ACM 41.7 (1998): 116-117.

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