Atos ilícitos

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas481-532
CAPÍTULO 18
ATOS ILÍCITOS
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Um dos preceitos morais mais marcantes do mundo ocidental nos remete aos
ensinamentos de Eneu Domício Ulpiano, que viveu entre 150 e 228 da Era Cristã,
inf‌luenciando fortemente a ciência jurídica. Ele nos ensina1:
“10. ULPIANO; Regras, livro 1. – Justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um seu
direito.
§ 1. – Tais são os preceitos do direito: viver honestamente, não ofender ninguém, dar a cada um
o que lhe pertence.
§ 2. – Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, e a ciência do justo e do
injusto”.
Poucas sentenças encerram a fórmula de uma vida justa como essa. Vivêssemos
todos a observância de tais ensinamentos, os conf‌litos intersubjetivos seriam mini-
mizados. A realidade, todavia, se reveste de contornos mais dramáticos e demanda
a disciplina das possíveis violações ao ordenamento jurídico, que, em linhas gerais,
ref‌letem o objeto de nosso Capítulo – os atos ilícitos. Avancemos, pois, para tal
abordagem.
CONCEITO DE ATO ILÍCITO
A expressão ato ilícito comporta hoje uma multiplicidade de signif‌icados, to-
dos guardando entre si um ponto comum: a contrariedade ao Direito. Não obstante
as divergências conceituais que sobre o termo recaem, a opção por sua utilização,
ao invés de outros assemelhadas, como, por exemplo delito, ref‌lete uma escolha
ideológica, nascida no Iluminismo, como assevera Hans Hattenhauer2, de se criar
1. D. 1, 1, 10. ULPIANTUS libro 1. “Regularum. – Iustitia est constants et perpetua voluntas ius suum cuique
tribuendi. § 1. – Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum. cuique tribuere. §
2. – Iirisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia”.
2. HATTENHAUER, Hans. Conceptos fundamentales del derecho civil. Barcelona: Ariel Derecho, 1987, p. 100-
101. Tradução livre de: “A partir de entonces, la teoría del acto como realización de la libertad humana, es
la piedra angular del Derecho delictual. El hombre puede decidir libremente de qué modo desea alterar
su entorno, pero, como el acto es libertad hecha realidad, hay que responder de él, y esta responsabilidad
culmina en el deber de evitar por completo las consecuencias dañosas de un inadecuado uso de la libertad.
Si el acto es una af‌irmación de la libertad, será ‘ilícito’ donde comience la libertad de los demás. Por otra
parte, hay que regular con exactitud las consecuencias del acto ilícito, de modo que una exageración de las
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DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
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um superconceito aplicável às atuações livres do homem, por meio das quais este
contrariava o ordenamento vigente:
“A partir de então, a teoria do ato como realização da liberdade humana é a pedra angular do
direito delitual. O homem pode decidir livremente de que modo deseja alterar seu entorno, po-
rém, como o ato é liberdade feita realidade, tem que responder por ele, e esta responsabilidade
culmina no dever de evitar por completo as consequências danosas de um inadequado uso da
liberdade. Se o ato é uma armação da liberdade, será ‘ilícito’ onde começa a liberdade dos outros.
Por outro lado, há que se regular com exatidão as consequências do ato ilícito, de modo que um
exagero nas sanções não limite inadequadamente a liberdade do agente, deixando-o prostrado
na inação. O que traduzia na prática kantiana do Direito como organização e delimitação do
âmbito de liberdade. A fronteira entre ato lícito e ilícito devia ser reconhecível para o leigo no
Direito, o que conferia importância prática à lei proibitiva como pedra de toque para a proteção
tanto da liberdade alheia como dos direitos subjetivos”.
Importante assentar as premissas lançadas pois, no início do presente volume,
quando abordamos a classif‌icação geral dos fatos jurídicos (em sentido lato), divi-
dimos as ações humanas entre aquelas em que a manifestação de vontade integrava
o suporte fático (atos jurídicos – em sentido lato) e aquelas em que isso não ocorria
(atos-fatos). Lembre-se que, naquela ocasião, fora estabelecido que os atos jurídicos
(em sentido lato) se tripartiam nas seguintes espécies: a) atos jurídicos em sentido
estrito, b) negócios jurídicos e c) atos ilícitos. Não podemos, pois, olvidar que,
segundo a hodierna doutrina civilista, os atos ilícitos são espécie de atos jurídicos,
porém contrários ao direito.
Não se pense, porém, que o conceito ora estudado não traz divergências. Hugo
R. Zuleta3 aponta algumas controvérsias quanto à def‌inição de ato ilícito. Na tradi-
ção jusnaturalista, assim doutrina, atribuir ao ato o título de ilícito seria uma forma
de adjetivá-lo como mau, podendo este mal ser contrário ao direito natural (mala
in se) ou podendo haver sido obstado pela ordem social positiva (mala prohibita),
sem vincular-se, necessariamente, ao direito natural. Os positivistas, ao seu turno,
restringiriam sua aplicação apenas aos atos proibidos pelo ordenamento jurídico.
Tais conceitos não seriam suf‌icientes. Reputa o Autor acertado que o ato ilícito seja
associado à ideia de sanção, porquanto seria inviável, pelo ponto de vista lógico,
admitir-se a possibilidade de contradição lógica entre uma norma que impõe uma
conduta e o comportamento, de fato, dos seus destinatários. Assim, ilícito seria o
ato, teoricamente previsto no ordenamento, como pressuposto da aplicação de uma
sanção.
sanciones no limite inadecuadamente la libertad del actuante dejándole postrado en la inacción. Lo que
traducía en la práctica kantiana del Derecho como organización y delimitación del ámbito de libertad. La
frontera entre acto lícito e ilícito debía ser reconocible para el lego en Derecho, lo que confería importancia
práctica a la ley prohibitiva como piedra de toque para la protección tanto de la libertad ajena como de los
derechos subjetivos”.
3. ZULETA, Hugo R. Ilícito. In: GARZÓN VALDÉS, Ernesto; LAPORTA, Francisco J. (Coord.). El derecho y
la justicia. 2. ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 334-340.
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CAPÍTULO 18 • ATOS ILÍCITOS
Entre tantas def‌inições que se desenharam ao longo da história, aquela que se
impôs, em nossa norma, foi a que identif‌icou como um dos elementos principais
da ilicitude a contrariedade ao direito. A leitura do artigo 186 do Código Civil, a
consagra ao af‌irmar que pratica ato ilícito todo aquele que “viola direito” alheio.
Mas, como assevera Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge4, ainda quando se
trabalha com a última def‌inição, ou seja, de ilicitude como contrariedade ao direito,
importa reconhecer que ela se divide em duas correntes: a subjetivista e a objetivista.
Esta reconhece a ilicitude na automática contrariedade ao ordenamento, ao passo
que a primeira o faz somente quando, aliada à violação ao direito, realiza-se um
juízo de valor, por meio do qual se reconhece como ilícita a conduta derivada de ato
humano livre e consciente.
Explana ainda Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge5 que abraçar a teoria
objetivista importa reconhecer, na norma, um insuf‌iciente caráter valorativo. Assim,
quando um amental deliberadamente ceifasse vida alheia, sua conduta simplesmente
feriria um valor caro ao ordenamento. Seu ato, para os objetivistas, seria, portanto,
ilícito, pois estaria a violar um valor consagrado na lei.
Tal juízo de valor, prossegue o autor, não seria, repita-se, suf‌iciente, pois a ele,
outro deveria se seguir, desta feita relativo ao agente, a se averiguar, por meio da
análise de sua conduta livre e consciente, o atendimento ou não da função impera-
tiva da norma.
Na mesma esteira, a diferenciar os parâmetros objetivo e subjetivo de reconhe-
cimento da ilicitude, pode-se lembrar das lições de Jorge Mosset Iturraspe6, quando
af‌irma:
4. PESSOA JORGE, Fernando de Sandy Lopes. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra:
Almedina, 1995, p. 63.
5. PESSOA JORGE, Fernando de Sandy Lopes. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra:
Almedina, 1995, p. 66.
6. ITURRASPE, Jorge Mosset. In: CARLUCCI, Aida Kemelmajer de (Coord.). Responsabilidad civil. Buenos
Aires: Hammurabi, 1993, p. 61-62. Tradução livre de: “(…) c) Antijuridicidad subjetiva. Es un criterio
diferente, opuesto puede decirse, em cuanto en la búsqueda a que estamos empeñados, abandona el Sen-
dero de la desaprobación del acto o hecho, para avanzar sobre la desaprobación de la conducta del autor
o agente. La antijuridicidad se encuentra en la culpa, la famosa faute de la doctrina francesa. Las culpas
o los errores de conducta no aparecen, claro está, tipif‌icados; son los jueces los encargados de juzgar de
acuerdo con modelos de conductas por ellos construidos. Lo que procede, af‌irman los sostenedores de esta
interpretación, es preguntarse cuál es el tipo de ser humano y de conducta humana, que el juez debe tener
en cuenta como modelo de referencia, cuando tenga que formar criterio sobre la existencia o inexistencia
de culpa. (…). d) Antijuridicidad objetiva. Para este criterio, que compartimos, el juicio de aprobación o de
desaprobación y la consiguiente condena a reparar, atiende exclusivamente al acto o hecho y, en particular
a su resultado, el daño causado. La antijuridicidad no mira al agente sino a la víctima; de ahí que haya
daño injusto aun cuando medie involuntariamente en el obrar o bien falte la culpabilidad. La idea central
es que, al menos como regla, todo daño es injusto en cuanto lesiona un interés merecedor de tutela y, a la
vez, viola el genérico deber jurídico de no causar daño a otro, alterum non laedere”.
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