Pessoa natural ? início e fim da personalidade

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas105-138
CAPÍTULO 5
PESSOA NATURAL – INÍCIO E FIM
DA PERSONALIDADE
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Já salientamos, na presente obra, que o Código Civil se estrutura, em sua Parte
Geral, de forma a disciplinar os principais aspectos das relações jurídicas: os seus
sujeitos (pessoas), o seu objeto (bens) e tudo aquilo que seja capaz de iniciar, modi-
f‌icar ou pôr f‌im a relações jurídicas (fatos jurídicos em sentido lato). Sigamos, pois,
tal sistemática e encetemos nossa análise pelos sujeitos de direito, dedicando-nos
ao estudo da personalidade.
Sabe-se que as pessoas se classif‌icam, de um lado, em naturais ou físicas, quando
seres humanos, e, de outro, em coletivas ou jurídicas, quando representadas por
agrupamentos que ostentam a faculdade de serem titulares de direitos e deveres,
como sói acontecer com as associações, fundações, sociedades, partidos políticos e
entidades religiosas, entre outros.
Mas como se tornam sujeitos de direitos? Até quando ostentam essa caracterís-
tica? Qual o alcance prático de assim serem classif‌icados? Essas são apenas algumas
das indagações que nos propomos a analisar doravante.
A QUESTÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Entende-se como personalidade jurídica a aptidão para ser titular de relações
jurídicas. Nos dizeres de Carlos Alberto da Mota Pinto1, ela é, nos homens, um
imperativo da dignidade que se deve atribuir a todos os seres humanos e, nos entes
coletivos, um processo técnico de estruturação de relações jurídicas vinculadas com
determinado empreendimento coletivo.
No linguajar comum, pessoas e seres humanos são ideias que se confundem,
como se fossem sinônimos, embora, juridicamente, o primeiro vocábulo englobe,
além dos últimos, outros entes que não são humanos – as chamadas pessoas jurídi-
cas. Nem sempre foi assim. Na Roma Antiga, a premissa intuitivamente concebida
1. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 191.
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 105DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 105 17/09/2021 11:08:2517/09/2021 11:08:25
DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
106
de sinonímia entre humanos e pessoas não era respeitada2 integralmente, pois se
constatou a existência de homens que não eram, no sentido técnico atual, pessoas
(escravos) e de “pessoas” que não eram seres humanos, como ocorreu no interessante
episódio, entre as mais diversas extravagâncias dos imperadores de Roma, em que
o cavalo Incitatus, pertencente a Calígula, foi nomeado para o Senado Romano, o
que comprova que a titularidade de direitos, hoje exclusiva para os seres humanos
e outros entes coletivos (as chamadas pessoas jurídicas), nem sempre foi regra entre
os romanos.
O INÍCIO DA PERSONALIDADE NATURAL
O Código Civil dispõe quanto ao início da personalidade:
Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro”.
A análise conjunta dos dois dispositivos nos remete a uma das mais controver-
tidas questões do Direito Civil: quando se inicia a personalidade?
Ora, de um lado, tem-se que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na órbita
civil. Logo, aquele que for titular de direitos necessariamente será pessoa. Ocorre,
por outro lado, que o Código Civil é claro ao af‌irmar que a personalidade civil se
inicia com o nascimento, embora sejam preservados, desde a concepção, os direi-
tos do nascituro. É de indagar-se: sendo reconhecidos direitos ao nascituro e se a
titularidade de qualquer direito implica personalidade para quem for o seu sujeito,
não seriam, pois, os nascituros pessoas naturais?
Entendemos que não e enfrentemos, assim, o aparente paradoxo iniciando a
abordagem pelo regramento da questão em Roma.
A QUESTÃO NO DIREITO ROMANO
Em Roma, a existência do homem livre, sujeito de direito, só se iniciava com
o seu nascimento, como se pode depreender do brocardo “partus nondum editus
homo non recte fuisse dicitur”3, que, livremente, se pode traduzir como “a criança não
nascida não se pode dizer que seja propriamente um homem”. A ideia se completa
2. SERAFINI, Filippo. Diritto romano. 10. ed. Roma: Athenaeum, 1920, p. 105, traduz essa ideia ao af‌irmar: “In
base alla posizione che l’uomo occupa nell’ordine giuridico il concetto primitivo di persona è sinonimo di
quello di uomo. D’onde consegue che, secondo quest’idea primitiva, ogni uomo dovrebbe essere persona,
e nessun altro fuori di lui; ma questa identità di concetto non è riconosciuta dalle leggi romane. Le quali,
restringendo o allargando l’idea primitiva, negarono la personalità a certi individui umani, e d’altra parte
la concedettero ad esseri non umani. E cosi ammettonsi in diritto romano persone che non sono individui
umani, ed esistono delgi uomini che non sono persone, cioè gli schiavi”.
3. D. 35, 2, 9, 1 Papin.
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 106DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 106 17/09/2021 11:08:2517/09/2021 11:08:25
107
CAPÍTULO 5 • PESSOA NATURAL – INÍCIO E FIM DA PERSONALIDADE
com a máxima “antequam edatur, mulieris portio est vel viscerum”4, que, em linhas
gerais, signif‌ica que o infante, antes do nascimento, considerava-se como parte da
mulher ou de suas vísceras.
Ser parte das vísceras maternas, todavia, não implicava liberdade para a mulher
cometer aborto, dispondo de uma fração destacável de seu corpo. A Lex Cornelia
de sicariis et venef‌icis (81 a.C.) criminalizou, em Roma, essa conduta, não tanto
por uma preocupação com a vida do nascituro, como se pleno sujeito de direito
este fosse, mas, sobretudo, mirando a proteção do direito paterno de ver o f‌ilho que
ajudou a conceber efetivamente nascido5.
Certos interesses do nascituro, todavia, já naquela civilização, eram protegidos.
Aliás, alguma proteção ao nascituro, desde que nascido posteriormente, poderia
derivar do seguinte brocardo: “Qui in utero est, perinde ac si in rebus humanis esset,
custoditur, quotiens de commodis ipsius partus quaeritur: quamquam, antequam nascatur,
nequaquam prosit”6, que livremente poderíamos entender como “quem estiver no
útero será tratado como se humano for toda vez que se inquirir sobre os proveitos
do próprio parto. Antes de nascer, porém, em nada poderá se benef‌iciar”.
Assim, como advertem Alexandre Correia e Gaetano Sciascia7, o nascituro,
em Roma, benef‌iciava-se de seu status libertatis, se isto lhe aproveitasse, no mo-
mento da concepção, assim como das qualidades honoríf‌icas do pai. Além dessas
prerrogativas, ao nascituro reservavam-se direitos sucessórios e nomeava-se-lhe
curador. Não se pode af‌irmar, entretanto, que o nascituro gozasse do mesmo sta-
tus dos homens nascidos, para f‌ins de determinação de sua capacidade jurídica,
que só era reconhecida quando o parto fosse perfeito (realizado ao menos dentro
do sétimo mês de concepção) e se possuísse o que se convencionou chamar de
“forma humana”.
4. D. 25, 4, 1, 1 Ulp.
5. SEDANO, Carlos D. Vieyra. Dilemas jurídicos de la reproducción medicamente asistida. El conceptus
extracorporis y propuesta para la incorporación al Código Civil para el Distrito Federal, de la institución
de la agnación prenatal. Disponível em: http://www.derecho.unam.mx/DUAD/boletin/pdf/06-sep-08.
doc. Acesso em: 11 jan. 2012, traduz essa ideia ao af‌irmar sobre a proteção ao nascituro: “1) Derecho a la
vida y protección a sus derechos: En caso de que la madre incurriera en alguna falta que ameritara pena
capital, mientras estuviera en estado de gestación, ésta era suspendida hasta que diera a luz. Los derechos
del nasciturus eran protegidos y garantizados mediante la asignación de un curator ventris. En el Derecho
Romano sí fue tipif‌icado el delito de aborto, pero el bien jurídicamente protegido no era la vida del producto
de la concepción, sino el derecho que el marido tenía a procrear y por eso se estimaba que la mujer que
se practicara un aborto defraudaba a la sacra privata de su marido. Posteriormente, con la Lex Cornelia de
sicariis et venef‌icis, se consideraba un crimen cuando la mujer abortaba y por ello debía sufrir la pena de
destierro”.
6. D. 1, 5, 7 Paul.
7. CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1953, v. I,
p. 40-41.
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 107DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 107 17/09/2021 11:08:2517/09/2021 11:08:25

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT