Conflito de leis no tempo

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas31-60
CAPÍTULO 2
CONFLITO DE LEIS NO TEMPO
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
O ordenamento jurídico não representa uma realidade estática. Sua mutabili-
dade exsurge com a força das transformações sociais, e, nessa esteira, uma questão
prática se coloca: e se uma dada relação jurídica nascer sob o império de determinada
lei, mas for alcançada, no seu curso, pela edição de novo regramento sobre a mesma
matéria? Qual haveria de ser a norma aplicável? A antiga ou a nova?
O fato é que sempre existiram leis novas a sucederem as antigas e esse é o do-
mínio do chamado direito intertemporal, que, segundo Carlos Maximiliano1, “f‌ixa
o alcance do império de duas normas que se seguem reciprocamente”, tendo por
objetivo “determinar os limites do domínio de cada uma dentre duas disposições
jurídicas consecutivas sobre o mesmo assunto”.
A questão não é nova e está indelevelmente associada ao progresso humano.
Em passado remoto, as mudanças no ordenamento eram compreendidas como pos-
tulados divinos e que, portanto, não conheceriam limites temporais2. Percebe-se,
então, que uma nova lei editada, compreendida como emanação do poder dos deu-
ses, deveria ser endereçada inclusive às relações iniciadas no passado, sendo, assim,
retroativa. Esse espírito animou a edição do Código de Manú, que, ao se aplicar aos
fatos pretéritos, não excepcionou nem sequer a matéria penal por ele versada3. Já na
Grécia, segundo Carlos Maximiliano4, fruto do avanço f‌ilosóf‌ico daquele povo, os
ensinamentos de Platão e o motivo da revogação parcial de lei publicada sob o arcon-
tado de Euclides de Aristophonte revelaram o alvorecer da ideia da irretroatividade.
Sabe-se, porém, que foi em Roma que o princípio da inaplicabilidade da lei
nova aos fatos pretéritos transformou-se, após lenta evolução, na semente da atual
cláusula de irretroatividade das leis. Não se pode, a propósito, deixar de mencionar
o célebre discurso de Cícero a recriminar Verres pela elaboração de edito com força
1. MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1946, p. 7.
2. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil – introdução, parte geral e teoria dos negócios jurí-
dicos. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, v. I, p. 191-192.
3. MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1946, p. 17.
4. MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1946, p. 17.
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 31DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 31 17/09/2021 11:08:2017/09/2021 11:08:20
DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
32
retroativa, bem como a Constituição de Teodósio I, datada de 393, que continha
fórmula de irretroatividade5.
A alusão ao Direito Romano, todavia, não é pacíf‌ica. Há quem tente inf‌irmar a
premissa acima lançada pelo efeito retroativo que Justiniano conferiu às Institutiones e
ao Digestum. Esclarece, todavia, Savigny6 que essas coletâneas de normas não criaram
novo direito, mas serviram para depurar o já existente, sendo, em realidade, leis inter-
pretativas. Logo, imputar-lhes efeito retroativo não parece uma conclusão acertada.
No direito canônico, por sua vez, a questão posta seguia duas lógicas. A pri-
meira, de origem romana, apontava para a consagração da irretroatividade das leis,
como o fez Gregório IX ao dispor no Código Canônico sobre o tema. A segunda,
todavia, reconhecia a superioridade do ius divinum sobre o ius humanum, impondo
aos papas a retroatividade de regras consistentes na revelação do direito divino,
em contraposição àquelas de mera inovação legislativa sobre assuntos mundanos7.
Exemplo marcante foi a retroatividade conferida pela Constituição de Alexandre
III ao versar sobre usura.
Assim, até a Idade Moderna, foram assentadas as raízes do princípio da irre-
troatividade. Foi, contudo, na Idade Contemporânea que elas encontraram seguro
albergue nas ideias da Revolução Francesa, espalhando-se pelas diversas codif‌ica-
ções do f‌inal do século XVIII (Código da Prússia, Introdução, § 14) e do século XIX
(Códigos francês – artigo 2º, austríaco de 1811 – § 5º e italiano de 1865 – artigo 2º
das disposições preliminares)8.
Atualmente, o postulado da irretroatividade não se restringe apenas aos Códigos.
Alguns países, como o Brasil, conferem-lhe sede constitucional, enquanto outros
preferem dedicar-lhe assento em leis ordinárias, tolerando algumas investidas, pelo
legislador, contra tal princípio, que deverá, no entanto, prevalecer na hipótese de
silêncio da nova norma9.
Feito esse brevíssimo panorama da evolução do princípio da irretroatividade,
volvamos nosso olhar para a abordagem que o tema merece entre nós, brasileiros.
A QUESTÃO DA IRRETROATIVIDADE DA LEI NO BRASIL
No Brasil, todas as Constituições, à exceção da Carta de 1937, acolheram o
princípio da irretroatividade. É nítida a vantagem que a constitucionalização da
5. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. 2. ed. São Paulo: Ed.
RT, 1974, t. V, p. 15.
6. SAVIGNY, Friedrich Carl von. Sistema do direito romano atual. Ijuí/RS: Unijuí, 2004, v. VIII, p. 295-296.
7. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. 2. ed. São Paulo: Ed.
RT, 1974, t. V, p. 15.
8. FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Roma: Athenaeum, 1921, p. 259-60.
9. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil – introdução, parte geral e teoria dos negócios jurí-
dicos. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, v. I, p. 193-194.
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 32DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 32 17/09/2021 11:08:2117/09/2021 11:08:21

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT