Direitos de personalidade

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas177-213
CAPÍTULO 7
DIREITOS DE PERSONALIDADE
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
O estudo da personalidade nos remete a imprescindível tópico para a sua com-
preensão: a análise dos direitos de personalidade.
Em plástica metáfora, Adriano de Cupis1 af‌irma que a personalidade é uma
ossatura e os tecidos destinados a dar conteúdo a ela são os chamados direitos de
personalidade. Compreendemos, portanto, que o núcleo básico de direitos sub-
jetivos que dão consistência à personalidade, sem a qual ela não faria sentido, são
denominados “direitos de personalidade”.
Assim, negar a existência de direitos de personalidade signif‌ica repudiar a
personalidade em si, seja física ou jurídica. Mal andou, portanto, o Enunciado 286
da IV Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, em
Brasília, ao pugnar:
“Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes
de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”.
Expliquemo-nos. As pessoas físicas têm natureza distinta das pessoas jurídicas,
nem por isso, as últimas deixam de ser pessoas. Retornando ao conceito de direitos
de personalidade, não podemos limitá-los apenas àqueles que decorrem da digni-
dade da pessoa humana. Não! O conceito não é esse! Direitos de personalidade são
aqueles sem os quais não se poderia pensar em personalidade, por integrarem sua
essência. Assim, a essência da personalidade natural é diferente da essência da per-
sonalidade jurídica. Não há que se pensar em personalidade natural sem o respeito
à dignidade do agente. Logo, a dignidade da pessoa humana é a raiz dos direitos de
personalidade dos seres humanos. Esse fato, por si, não exclui a existência de direitos
de personalidade que digam respeito à essência das pessoas jurídicas e que, por isso,
não devam derivar da dignidade da pessoa humana.
O equívoco, aliás, parece derivar da leitura que se faz da obra de Pietro Perlin-
gieri2, quando o mencionado autor assevera:
1. CUPIS, Adriano de Pietro. Os direitos de personalidade. Lisboa: Livraria Morais, 1961, p. 15-17.
2. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 772-773.
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DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
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“257. Os chamados direitos da personalidade e pessoas jurídicas. É possível remover o equívo-
co sobre a extensão dos direitos da pessoa humana às pessoas jurídicas. Se a tutela da pessoa
humana afunda suas raízes no princípio geral presente no art. 2 Const. e qualquer aspecto ou
interesse concernente à pessoa é tutelado na medida em que sejam essenciais para seu pleno e
livre desenvolvimento, também é verdade que qualquer interesse, referido às pessoas jurídicas,
não apenas assume diferentes signicados, mas recebe também uma tutela que encontra um
fundamento diverso. Para as pessoas jurídicas o recurso ao princípio geral de tutela dos ‘direitos
invioláveis’ do homem constituiria uma referência totalmente injusticada, expressão de uma
misticadora interpretação extensiva fundada em um silogismo: a pessoa física é sujeito que tem
tutela; a pessoa jurídica é sujeito; ergo, deve-se aplicar a mesma tutela à pessoa jurídica. Daí uma
concepção dogmática e unitária da subjetividade como fato neutro. O valor do sujeito pessoa
física é, todavia, diverso daquele do sujeito pessoa jurídica.
É necessário adquirir consciência da identidade apenas aparente de problemáticas como, por
exemplo, o sigilo, a privacidade e a informação. Estes aspectos assumem valor existencial unica-
mente para a pessoa humana; nas pessoas jurídicas eles exprimem interesses diversos, geralmente
de natureza patrimonial”.
A visão de Luís A. Carvalho Fernandes3 acerca dos direitos de personalidade
da pessoa jurídica merece aplausos e caminha em sentido mais lúcido:
“A referência especíca a estes direitos, que poderia ter lugar no estudo genérico da pessoa jurídica,
justica-se, fundamentalmente, pela circunstância de eles serem essenciais à própria noção de
personalidade, de que constituem o conteúdo mínimo. Neste sentido se diz, justamente, que tais
direitos são inerentes à personalidade, incidindo sobre os seus bens fundamentais, como sejam a
vida, a honra, o nome. Deste modo, num plano formal, esta categoria de direitos faz ainda algum
sentido quanto às pessoas colectivas, embora num plano ajustado à sua natureza e sem o sentido
transcendental que ela reveste em relação às pessoas singulares”.
Assim, é açodada a crítica formulada por Pietro Perlingieri de que a proteção
ao sigilo, à intimidade e à privacidade das pessoas jurídicas não passa da defesa de
seus interesses patrimoniais. Exemplo contundente para desfazer o engano repousa
nas próprias entidades religiosas. Um concílio responsável pela escolha do Papa é
evento que diz respeito a número limitadíssimo de membros da Igreja Católica. Su-
ponha-se que alguém grave as discussões entre os cardeais e que elas eventualmente
venham a abalar a imagem da própria Igreja. A violação à milenar tradição de sigilo
poderia, sim, no exemplo dado, acarretar danos que não são patrimoniais, mas, à
toda evidência, morais. Repita-se: não é pelo fato de os direitos de personalidade
das pessoas jurídicas não terem a mesma extensão daquele reconhecido às pessoas
naturais, que inexistiriam.
Há que se reconhecer, porém, a posição central que o ser humano ocupa no
estudo do Direito Civil, o que faz, como visto, a amplitude dos direitos de persona-
lidade das pessoas singulares ser inf‌initamente maior do que a das pessoas coletivas.
Isso, porém, repita-se, não nos autoriza a negá-los aos entes morais.
3. FERNANDES, Luís A. Carvalho. Teoria geral do direito civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1995, v. I, p. 188.
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CAPÍTULO 7 • DIREITOS DE PERSONALIDADE
BREVE HISTÓRICO
Os direitos de personalidade são uma construção teórica relativamente recente,
embora se tenham “tornado possíveis a partir da descoberta da pessoa, que (...) só
surge com o pensamento greco-cristão, e muito particular com o contributo deste
último”4. Não se pense, todavia, que, mesmo na ausência de uma formulação abstrata
que os disciplinasse, deixassem tais direitos de existir nas civilizações mais antigas.
O seu regramento, porém, era casuístico e alternava regras protetivas de cunho penal
e civil. As Institutas de Justiniano5 trazem um claro exemplo de proteção à honra da
pessoa ao abordarem, em título próprio, a questão “das injúrias”, def‌inindo-as como
a imposição de ultrajes a uma pessoa. Assevera que, em toda espécie de injúria, pode
ser intentada ação civil ou criminal, consistindo a pena, na primeira, em quantia
estimada para compensar o dano6.
Entender o nascimento dos direitos de personalidade como categoria abstrata
demanda, como adverte Rabindranath V. A. Capelo de Sousa7, passa por reconhecer
que a caracterização do “percurso e do futuro histórico do homem” está referenciada
por duas linhas de forças, em certa medida antagônicas, a saber: a) de um lado, existem
“vetores de especialização de tarefas e de diferenciação entre os homens, pontuadas
mais por relações de dominação pessoal, grupal ou classista do que por lados de
solidariedade social”; e, de outro lado, b) emergem vetores libertários e igualitários,
“decorrentes inclusivamente de postura algo diversas (como a revolta ou o amor)
face ao real do processo histórico”. As duas forças se reinscrevem gradualmente na
consciência humana e nas consciências cultural e jurídica da comunidade, guian-
do-nos ao estágio atual em que se encontra o tratamento jurídico do ser humano e,
consequentemente, dos direitos de personalidade. Importante, pois, no dialético
entrechoque de tais forças, compreender as contribuições trazidas pelo cristianis-
mo (em virtude da ideia de dignidade da pessoa humana), pelo jusnaturalismo (em
decorrência da concepção da existência de direitos inatos) e pelo iluminismo (pela
valorização do indivíduo em face do Estado)8.
Tem-se assentado, pois, que o estabelecimento dos direitos de personalidade
como categoria abstrata confunde-se com a exacerbação da proteção ao homem,
fruto de uma convergência de signif‌icativas mudanças sociais, bem sintetizadas nas
lições de César Fiúza9:
“(...) a evolução do capitalismo industrial, a concentração, a massicação, os horrores da Segunda
Guerra Mundial, com o desenvolvimento da tecnologia, principalmente da biotecnologia etc., a
4. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil – teoria geral. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, v. I, p. 72.
5. Inst. 4,4.
6. Inst. 4, 4, 10.
7. CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995,
p. 28.
8. FIÚZA, César. Direito civil – curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 158.
9. FIÚZA, César. Direito civil – curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 158.
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