Pessoa jurídica
Autor | Rogério Andrade Cavalcanti Araujo |
Páginas | 215-259 |
CAPÍTULO 8
PESSOA JURÍDICA
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
A civilização moderna seria inconcebível sem a existência das pessoas jurídicas.
Elas conservam posição de destaque nas diversas relações humanas, empregando
milhões de pessoas, movimentando fabulosas quantias anualmente, dinamizando
extraordinariamente o comércio no globo.
Pessoa é um vocábulo de origem latina cujo significado primitivo (persona) era
máscara1. Inicialmente usada para designar um instrumento de uso de atores nos
teatros romanos, por um processo de evolução linguística, passou a denominar, em
primeiro lugar, os seres humanos em geral e, hodiernamente, todos os atores do “pal-
co” jurídico, inclusive os entes morais. Estes, há que se frisar, derivaram da própria
necessidade dos indivíduos de se organizarem em coletividades para alcançarem
escopos comuns, impossíveis de serem concretizados por um único homem, sendo,
pois, uma evolução natural e não uma criação humana artificial.
Possível, assim, conceituar, para início de análise, as pessoas jurídicas, segundo
Diego Espín Canovas2 como “(...) a coletividade de pessoas ou conjunto de bens
que, organizada para a realização de um fim permanente, obtém o reconhecimento
pelo Estado como sujeito de Direito”.
A definição de pessoa jurídica assim lançada pode falsamente nos induzir à
conclusão de não estarmos tratando de uma questão tormentosa. Lembra Francisco
Amaral3, com a precisão que lhe é habitual, que o conceito em apreço é de elabora-
ção moderna, situada entre os séculos XVIII e XIX. E, mesmo assim, como acentua
Francesco Ferrara4, experimentou grande variação histórica.
Nessa esteira, sabe-se que, em Roma, as pessoas jurídicas não eram tratadas como
uma categoria abstrata, passível de teorização pelos juristas. Todavia, os princípios
por eles criados, generalizados, serviram de base para as modernas formulações5.
1. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. I, p. 61.
2. ESPÍN CANOVAS, Diego. Manual de derecho civil español. 2. ed. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1959,
v. I, p. 290: “Persona jurídica es, pues, la colectividad de personas o conjunto de bienes que, organizado
para la realización de un fin permanente, obtiene el reconocimiento por el Estado como sujeto de derecho”.
3. AMARAL, Francisco. Direito civil – introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 277.
5. CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1953, v. I,
p. 51.
DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
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De qualquer sorte, os romanos entenderam, a partir do direito clássico, que entida-
des poderiam existir com direitos distintos dos seus integrantes. Inicialmente, esse
pensamento se desenhou a respeito de certas pessoas de direito público, dotadas de
alguma soberania, como o Estado – o populus romanus –, as civitates e as coloniae. Em
relação aos municípios (comunidades agregadas às tribos romanas, sem soberania),
as relações eram regidas tipicamente pelo direito privado, sendo considerados, pois,
os embriões das demais entidades de base corporativa6, estendendo-se o seu modelo
a outros entes livremente formados pela associação de pessoas: os collegia7, em que
preponderava a figura dos sócios ou associados, e que também eram chamados de
universitatis, societates, corpora. Eram, pois, corporações, assim tratadas como co-
letividades às quais se reconhecia capacidade jurídica. Concedia-se, a tais figuras, o
chamado corpus habere, ou seja, poderiam possuir uma espécie de estabelecimento
e uma representação em juízo8.
Já as atuais fundações não contavam com tal denominação no Direito Roma-
no. Irretorquível, todavia, a existência, no direito pós-clássico, de determinadas
entidades que a elas muito se assemelhavam, possuindo base patrimonial, como as
igrejas, os conventos, os hospitais, os hospícios e estabelecimentos de beneficên-
cia. Podiam, inclusive, herdar9, embora nos lembre Moreira Alves10 de que não há,
nos textos romanos, fontes seguras que indiquem, a despeito de tal tratamento, ser
compreendidas como verdadeiras pessoas jurídicas.
Em realidade, a conformação das fundações radica-se na Idade Média, influen-
ciada pela forma de organização da Igreja. Afirma Ferrara, opinião, de certo modo,
era concebida como a soma dos fiéis (universitas fidelium). Esse modelo jurídico dei-
xava, assim, de dar destaque para a base corporativa da pessoa, passando a ressaltar
a Igreja como o império de Deus sobre a terra, sendo, pois, uma unidade mística,
invisível, e todos os institutos eclesiásticos consideravam-se entes ideais, fundados
por uma vontade superior. Cada ente eclesiástico era tratado, portanto, como uma
unidade autônoma. Assim se desenvolveu a ideia hodierna de fundação autônoma,
como sujeito de natureza ideal e transcendental. A universalidade seria um corpus
mysticum, um nomen iuris.
Ainda na Idade Média, tem-se que os germânicos não criaram um ente ideal
para designar a coletividade organizada. Sua base era sobretudo materialista, ao
contrário dos canonistas, e consideravam todos os bens doados às igrejas não partes
6. ALVES, José Carlos Moreira. Curso de direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 133.
7. CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1953, v. I,
p. 51.
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CAPÍTULO 8 • PESSOA JURÍDICA
integrantes de massa patrimonial sob a titularidade de algum ente abstrato, mas pro-
priedades dos santos aos quais eram dedicadas12. Todas essas diversas concepções
existentes, tão diferentes, entrechocaram-se e amoldaram-se na Idade Moderna, em
verdadeiro caos13.
Mais recentemente, já no século XIX, as pessoas jurídicas passaram a interessar
ao legislador, uma vez que associações e fundações eclesiásticas, bem como as pias,
acumularam grande patrimônio, impossibilitado de ser comerciado (mão morta).
Normas foram, então, ditadas para mitigar a proliferação de pessoas eclesiásticas,
impedindo a reconstituição da mão morta14.
Com essa regulamentação, passou-se a indagar se o Estado criaria as pessoas
jurídicas, se apenas atestaria a sua existência ou mesmo se conferiria roupagem
jurídica a uma formação social. Assim, várias teorias surgiram para explicar o fenô-
meno da personalidade moral, sendo três as concepções das quais estas derivavam15.
TEORIAS EXPLICATIVAS DA PESSOA JURÍDICA
Conforme noticiado, há três grandes conjuntos que agregam as diversas expli-
cações para as pessoas jurídicas. O primeiro deles congrega aquelas cuja premissa
é a de que apenas homens podem ser sujeitos de direito. Derivam desse entendimento
a teoria da ficção e a do patrimônio afetado a um fim.
A primeira indica que, sendo apenas os homens sujeitos de direito, as pessoas
jurídicas seriam criadas pela lei como uma ficção, uma abstração16. A capacidade
jurídica de tais entes (abstratos) restringir-se-ia a relações patrimoniais. Essa teoria,
que tem como grandes nomes Savigny e Putcha, não pôde ser aceita, não apenas pela
falsidade da premissa, mas também porque não explica como um sujeito abstrato
seria apenas uma “larva” de sujeito (na linguagem de Francesco Ferrara). Não se
pode, afirma o civilista italiano ao citar Brinz, fingir prender o cabelo em um prego
imaginário na parede, tal qual não se pode fingir haver um sujeito de direito se ele
realmente não existir17.
Entre nós, Orlando Gomes abraçou a teoria ficcionista. Embora discordemos
de suas conclusões, imperiosa a leitura de seus apontamentos18:
“Compreende-se, pelo exposto, que as pessoas jurídicas têm sua base na realidade social. Mas
a personalidade, isto é, a atribuição de capacidade jurídica, à semelhança do que ocorre com
as pessoas naturais, é uma cção de Direito, porque não passa de simples processo técnico. O
16. NADER, Paulo. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. I, p. 235.
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