Prescrição e decadência

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas533-583
CAPÍTULO 19
PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
“O Direito não socorre aos que dormem” é o que já se deduz da vetusta expres-
são latina “dormientibus non sucurrit jus”. A inércia do titular do direito, portanto,
quando prolongada por determinado período, pode engendrar efeitos contra si,
consubstanciados na perda das respectivas faculdades, que deixaram de ser exerci-
tadas: estamos a encetar o estudo da prescrição e da decadência.
As origens dos institutos remontam à Roma Antiga, quando não se mostrava
clara a distinção entre direito processual e material. Analisemos, com mais vagar,
a questão.
ASPECTOS HISTÓRICOS
A origem da prescrição remonta à própria evolução do direito processual roma-
no, mais especif‌icamente com o surgimento do processo formulário em substituição
ao sistema das Legis Actiones. Os dois sistemas promoviam a distribuição de justiça
por meio de duas etapas – a fase in iure, perante o magistrado, que exercia a iurisdictio
(poder competente para decidir se uma parte poderia reclamar sua pretensão diante
do juiz), e a fase apud iudicem, desenvolvida diante de um cidadão, espécie de juiz
popular, que detinha a iudicatio, ou seja, a autoridade para proferir julgamentos1.
Em linhas gerais, mal comparando, o litigante compareceria diante do pretor, que
exercia espécie de juízo de admissibilidade da demanda e remetia as partes ao juiz
que faria a instrução e julgamento do processo.
Sendo, entre os dois, o sistema mais antigo de ajuizar, as legis actiones repre-
sentava o império do sacramentalismo das formas. Assim, as partes compareciam
perante o magistrado (fase in iure) e faziam suas petições e declarações segundo mo-
delos a serem seguidos com extrema rigidez. Nessa fase, a mera troca de um simples
vocábulo, previsto para a referida ação, por outro, estranho ao texto (p. ex., cambiar
a palavra árvore por vinha), já era o suf‌iciente para o insucesso do pleito. Não raro,
portanto, os litigantes socorriam-se dos sacerdotes, juristas da Roma primitiva, que,
1. ALVES, Vilson Rodrigues. Da prescrição e da decadência no novo Código Civil. Campinas: Bookseller, 2003,
p. 438.
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DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
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como guardiões dos escritos atinentes às ações, poderiam auxiliar na correta adoção
do ritual previsto para a demanda2.
O formalismo exacerbado deixou de se harmonizar com uma sociedade que
se transformara numa potência militar e comercial. O primeiro passo concreto
para a decadência das legis actiones foi dado pela Lex Aebutia, editada por volta
da metade do século II a.C., e que permitia, às partes, a escolha do sistema a ser
utilizado: as legis actiones ou o processo formulário. Tal transformação f‌indou-
-se com a edição das leis Iuliae Iudiciariae (17 a.C.), que tornaram obrigatório
o último sistema3.
O ponto central do sistema estudado era a fórmula. Esta “é o esquema abstrato
existente no Edito dos magistrados judiciários, o qual servia de modelo para que,
num caso concreto, com as adaptações e as modif‌icações que se f‌izessem necessárias,
se redigisse o documento em que se f‌ixava o objeto da demanda a ser julgado pelo
juiz popular”4, conhecido este instrumento como iudicium.
O iudicium, convém lembrar, embora adaptado a esquemas abstratos já existen-
tes, era construído a partir da participação do autor e do réu, a delimitar os contornos
do litígio. Seja como for, a fórmula era dotada das seguintes partes principais5:
“a) Nomeação do juiz – indicação daquele que faria a instrução e julgamento do processo com
base no iudicium estabelecido pelo magistrado;
b) Demonstratio – normalmente a segunda parte da fórmula, na qual se resumem os fatos expostos
ao magistrado;
c) Intentio – parte mais importante da fórmula, porque nela se exprimia a pretensão do autor;
d) Condemnatio – parte da fórmula que contém a faculdade dada ao juiz de condenar ou absolver
o réu;
e) Adiudicatio – parte da fórmula que permite o juiz adjudicar algo a alguém. Não era obrigatória,
senão nas fórmulas de ações divisórias”.
Por outro lado, havia algumas partes acessórias. Eram elas6:
“a) Praescriptio – era assim chamada, pois aposta antes da demonstratio e da intentio. Podia ser
pro actore ou pro reo. A pro actore ocorria quando o autor desejasse delimitar bem o objeto do
litígio, a m de evitar que a resolução da lide pusesse m a outros direitos seus, bem como para
salientar que se tratava de negócio jurídico litigioso. Por exemplo, servia para aclarar que um
dado negócio, embora rmado por um homem livre, fora celebrado por seu escravo. Quanto
ao réu, este usava a praescriptio também com o to de delimitar o objeto litigioso, evitando o
2. IGLESIAS, Juan. Direito romano. São Paulo: Ed. RT, 2012, p. 272.
3. LONDRES DA NÓBREGA, Vandick. História e sistema de direito privado romano. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1955, p. 619.
4. ALVES, José Carlos Moreira. Curso de direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 209.
5. CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1953, v. I,
p. 98-99.
6. ALVES, José Carlos Moreira. Curso de direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 209.
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CAPÍTULO 19 • PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA
alargamento da coisa julgada contra ele, no caso de eventual derrota. Arma-se, no entanto, que
as duas modalidades haviam caído em desuso no século II d.C.
Câmara Leal, todavia, nos brinda com outra explicação7. Segundo ele, as ações, às quais se
encontravam vinculados os direitos, poderiam ser perpétuas, caso de direito quiritário, ou tem-
porárias, caso xadas nos editos dos pretores, com a indicação do prazo de duração da ação.
Caso a ação fosse temporária, haveria a possibilidade de inclusão pelo pretor da praescriptio
a determinar que o juiz popular observasse, no caso concreto, se o prazo para propositura
da ação já havia sido superado. Por uma espécie de metonímia, o termo praescriptio passou
a designar o efeito dessa medida processual, eventual perda de prazo, isto é, uma causa de
extinção do processo pela própria perda de prazo. O termo, então, que originariamente refe-
ria um acerto dos limites da lide passou a designar uma das causas de extinção da ação, por
inobservância de prazo processual. Por outras palavras, passou-se a denominar praescriptio o
fenômeno de extinção da ação por decurso de prazo. Este artifício também era usado em ações
reivindicatórias, fazendo com que o autor não pudesse retomar o bem do réu. Isto, todavia, não
se confundia com a usucapião, prevista na Lei das Doze Tábuas para a hipótese de aquisição
de bens móveis ou imóveis, pelo cidadão romano, após o uso prolongado, respectivamente,
por um ou dois anos. Note-se que este artifício só poderia ser utilizado pelo cidadão romano –
jamais por peregrinos e nunca em imóveis provinciais. Os pretores, todavia, em suas fórmulas
acrescentaram uma praescriptio longi temporis, a ser utilizada pelo possuidor, com justo título
e boa-fé, por dez anos entre presentes ou vinte entre ausentes. Esta exceção também recebeu o
nome de praescriptio. A Constituição Teodosiana aboliu as ações temporárias e estabeleceu a
praescriptio longissimi temporis, até mesmo para os casos em que o possuidor não tinha justo
título (trinta anos). Até então, a usucapião era meio de aquisição de propriedade e a praescriptio
uma exceção para extinção da ação reivindicatória. Justiniano houve, porém, por bem unicar
os dois institutos, dando origem às confusões terminológicas hoje experimentadas (usucapião
como prescrição aquisitiva).
b) Exceptio – A exceptio surgiu com o m da utilização, na fórmula da praescriptio (do autor e
do réu) como um de seus capítulos acessórios, e passou a ser manejada quando o réu invocava
direito próprio ou determinada circunstância para paralisar o direito do autor. Ela não negava,
pois, a existência do direito da outra parte, embora clamasse pela sua não observância, em virtude
de direito próprio (do demandado) ou de certa circunstância. A exceptio tinha necessariamente
que constar do iudicium, a pedido do réu, pois o juiz popular a este documento estava adstrito.
Podiam ser perpétuas ou dilatórias, gerais ou pessoais. Por m, a replicatio, a duplicatio e a tri-
plicatio eram exceções às exceções apresentadas pelas partes em litígio”.
Nota-se, assim, que a prescrição deita suas raízes em institutos processuais da
Antiga Roma. Não é de espantar-se que, naquela época, como era invocada para apon-
tar-se que o autor já não estava mais contemplado por uma actio, já que temporária
e expirado o prazo para o seu exercício, popularizou-se o senso, hoje impreciso, de
que a prescrição representa a perda da ação.
Não! Hodiernamente, entende-se que a ação é um direito subjetivo público
conferido aos litigantes, que seria abstrato em relação ao direito material invocado.
Assim, ainda que prescrita a pretensão, o simples fato de o autor ingressar em juízo
e vindicar a proteção do Estado-juiz é, por si, o exercício do seu direito de agir, ainda
7. CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da decadência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.
18.
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