Pessoa natural ? capacidade

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas139-176
CAPÍTULO 6
PESSOA NATURAL – CAPACIDADE
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Af‌irma Carlos Alberto da Mota Pinto estar o Direito Civil hodierno assentado
em sete princípios ou instituições fundamentais, a saber: a) o reconhecimento da
pessoa e dos direitos de personalidade; b) a liberdade contratual; c) a responsabi-
lidade civil; d) a concessão de personalidade aos entes coletivos; e) a propriedade
privada; f) a família; e g) o fenômeno sucessório. Duas ideias, todavia, permeiam
todo esse ramo do Direito, em seus diferentes matizes: a autonomia e a igualdade1.
Fixemo-nos na primeira delas – a autonomia – para que, depois, possamos
compreender o impacto da segunda – a igualdade – em alteração levada a efeito no
Código Civil pela Lei 13.146/2015. Pois bem, a expressão autonomia origina-se do
grego, pela combinação de “auto” (próprio) e “nomos” (norma). Ref‌lete a possibi-
lidade que os indivíduos têm de se regrarem, seja por meio de contratos ou de atos
unilaterais. Avulta, assim, para que tal desiderato seja alcançado, não apenas que
lhes sejam reconhecidos direitos pelo ordenamento jurídico, mas também que se
disciplinem quais os agentes que possuem o discernimento necessário para mani-
festarem suas vontades e, consequentemente, por elas se obrigarem. Estamos, pois,
a tratar do tema capacidade, cujo estudo será concentrado em suas duas espécies: a
capacidade de direito ou gozo e a capacidade de fato ou exercício.
Entende-se por capacidade de direito ou de gozo, segundo José de Oliveira
Ascensão2, “a medida das situações de que uma pessoa pode ser titular ou que pode
actuar”. O conceito, embora se aproxime da ideia de personalidade, com ela não
se confunde. Ora, do ponto de vista lógico, a personalidade é um prius em relação
à capacidade3. Além disso, como bem notado por Paulo Nader4, a personalidade é
um conceito absoluto. A capacidade de direito, ao seu turno, comporta gradações.
Logo, um estrangeiro, embora seja reconhecido como pessoa natural por nosso
1. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 83.
2. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil – teoria gera. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, v. I, p. 143.
3. MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil y comercial. Buenos Aires: EJEA, 1954, v. I, p. 90 af‌irma, com
razão, que: “En efecto, la capacidad es, por el contrario, solamente una consecuencia – aunque importante
– de ese status; lógicamente debe preceder la determinación del contenido del status de persona, en sus
aspectos fundamentales. (…) En la personalidad – que es el prius – está la raíz de todo derecho subjetivo
atribuido al hombre, puesto que, negada que fuese su personalidad, quedaría degradado al rango de objeto
y serían abolidas en él la autonomía y la libertad”.
4. NADER, Paulo. Curso de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, v. I, p. 183.
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DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
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ordenamento, nem mesmo em tese pode pleitear a Presidência da República. A sua
capacidade de gozo é diferente daquela garantida a brasileiros natos.
A capacidade de direito, porém, não será o único tema que nos ocupará dora-
vante. Dedicaremos algumas páginas ao estudo da capacidade de fato, concebida
como a aptidão para exercer, por si, os direitos e obrigações assegurados pelo orde-
namento jurídico. Essa possibilidade de exercício, por outro lado, guarda estreita
relação com o discernimento do agente para manifestar sua vontade. Dois aspectos
tradicionalmente balizavam a livre exteriorização do querer do sujeito de direito:
sua idade ou determinados estados que impossibilitam a compreensão de negócios
jurídicos a serem praticados. Assim, entendiam-se as enfermidades e as def‌iciências
mentais como hipóteses incapacitantes.
No entanto, o Estatuto da Pessoa com Def‌iciência (Lei 13.146/2015), em aten-
ção aos reclamos de tratamento igualitário a ser deferido às pessoas portadoras de
def‌iciências e por taxar de anacrônico o regramento dado anteriormente à matéria,
suprimiu das hipóteses então versadas pelo Código Civil os quadros psiquiátricos.
Avaliemos com mais vagar o tema, dividindo nossa abordagem em três etapas dis-
tintas – o tratamento dado à matéria em Roma, pelo Código Civil de 2002, em sua
concepção original e aquele hoje derivado da modif‌icação estabelecida pela Lei
13.146/2015.
A CAPACIDADE EM ROMA
Em Roma, adverte a doutrina5 sobre a existência de duas qualidades para que
o ser humano adquirisse personalidade jurídica, a saber: ser livre e ser cidadão ro-
mano. Por outro lado, a posição do sujeito no seio familiar era pressuposto de sua
plena capacidade de fato (deferida apenas a quem fosse um chefe de família). Nascia,
pois, a ideia de estado (status) civil, que resistiu ao longo dos séculos, sendo assim
abordado pelo Conselheiro Joaquim Ribas, ainda no Brasil imperial6:
“O direito Romano reconhecia três diversos graus de capacidade que os Jurisconsultos modernos
denominam estados; (status), a saber: o de liberdade, o de cidade e o de família; estes três estados
serviam de fundamento uns aos outros na mesma ordem por que os apresentamos, de sorte que a
perda do primeiro importava a dos outros, bem como a perda do segundo importava a do terceiro”.
Assim, temos que algumas circunstâncias7 limitavam a capacidade de direito.
São elas: a) a condição de liberto; b) a quase servidão; c) a intestabilidade (pena
imposta a quem não mais pudesse f‌igurar como testemunha ou realizar negócios
que dependessem delas); d) a infâmia (sanção decorrente de graves faltas contra
os costumes romanos); e) a turpitudo (má reputação, que, menos grave do que a
5. ALVES, José Carlos Moreira. Curso de direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 98.
6. RIBAS, Joaquim. Direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Rio, 1977, p. 279.
7. ALVES, José Carlos Moreira. Curso de direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 114.
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CAPÍTULO 6 • PESSOA NATURAL – CAPACIDADE
infâmia, inviabilizava a ocupação de determinados cargos públicos); f) questões
religiosas; g) o desempenho de função ou cargo público (que poderiam impor res-
trições à liberdade de contração de matrimônio); e h) os eunucos ou castrados. É de
se notar que as hipóteses citadas atuavam na extensão em que os sujeitos por elas
afetados poderiam, em tese, ser titulares de direitos ou obrigações. Assim, reforça-se
o pensamento de que mesmo a capacidade jurídica era tão somente a medida da
personalidade, variável segundo o agente em apreço. Importante ainda notar que, na
civilização romana, a capacidade de direito não era imutável, podendo sofrer altera-
ções, destacando-se, entre elas, a chamada capitis deminutio, ou seja, a diminuição
ou perda da capacidade de gozo8.
Igualmente a capacidade de fato sofria restrições decorrentes da idade, sexo,
alienação mental e prodigalidade. Quanto ao primeiro aspecto, dividiam-se os ro-
manos em púberes e impúberes (estes com idade inferior a doze anos, se meninas, e
quatorze anos, se meninos). Em relação ao sexo, as mulheres eram, nos primórdios
da civilização romana, incapazes de fato, porquanto submetidas à tutela do pai ou do
marido9. Os alienados mentais distinguiam-se entre aqueles que sofriam de loucura
contínua ou que eram dotados de intervalos de lucidez10. Os pródigos, por f‌im, se-
riam aqueles que gastavam ilimitadamente, sendo rapidamente reduzidos à miséria.
Resta esclarecer que, tanto em Roma quanto nos dias atuais, a incapacidade de
exercício já se dividia em absoluta ou relativa11, fato, porém, que, naquele período,
nem sempre importava as mesmas consequências observadas nos dias de hoje. Em
realidade, a questão da capacidade de fato, no direito romano, demandava a prévia
análise da posição do sujeito, capaz ou incapaz, no seio de seu grupo familiar. Ex-
pliquemo-nos.
Família, no sentido romano, implicava a existência de um grupo de pessoas
colocadas sob o poder de um chefe – o pater. Como esclarece Cretella Júnior12, na
família romana, “tudo gira em torno de um paterfamilias ao qual, sucessivamente,
se vão subordinando os descendentes – alieni juris – até a morte do chefe”. Frise-se
que o chefe da família exercia seu poder (potestas) sobre esposa, f‌ilhos, netos e res-
pectivas esposas. Curioso notar que um bebê, órfão de pai, poderia ser considerado
paterfamilias caso não possuísse qualquer ascendente masculino, sendo, assim,
considerado sui juris. Um adulto, por outro lado, com cinquenta anos, caso possu-
ísse ascendente masculino vivo, estaria, ordinariamente, colocado sob sua potestas
e seria um alieno juris.
8. SANTOS JUSTO, A. Direito romano privado. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, v. I, p. 136.
9. FERRARA, Francesco. Trattato di diritto civile italiano. Roma: Athenaeum, 1921, p. 497, ref‌letia a ideia
ao escrever: “Nei sistema primitivi la donna si trova sottoposta alla podestá dell’uomo, ora in condizione
di servitù ora di tutela. Nel diritto antico romano essa è sotto perpetua tutela, o del padre o del marito (in
manu). I suoi diritti successori sono limitati, inf‌ine è esclusa completamente dalla vita púbblica”.
10. ALVES, José Carlos Moreira. Curso de direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 127.
11. MATOS PEIXOTO, José Carlos de. Curso de direito romano. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, t. I, p. 262.
12. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 106.
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