Da Inconstitucionalidade das Leis e Atos Normativos

AutorAri Ferreira de Queiroz
Ocupação do AutorDoutor em Direito Constitucional
Páginas219-239

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1 Noções

A noção de controle da constitucionalidade se coaduna com a de constituição escrita e rígida. De fato, é inimaginável falar-se de inconstitucionalidade em face de constituição costumeira ou flexível, mesmo sendo escrita. Como diz Gilmar Ferreira Mendes, o controle da constitucionalidade para aferição e sanação de inconstitucionalidades é apanágio de constituição escrita, e nesse sentido o tema será analisado neste livro. De fato, se não há constituição escrita, mas tão somente princípios adotados como fundamentais pelos costumes ou tradições, como ocorre nos Países que seguem o modelo anglo-saxão (Inglaterra), não há obstáculo formal à paulatina modificação acompanhando o avanço normal da sociedade.

Por gozar a constituição escrita de supremacia em relação aos demais atos do poder público, como as leis, decretos, regulamentos, resoluções e instruções, nada, nem ninguém, poderá contrariar seus preceitos expressos ou implícitos, sob pena de inconstitucionalidade. Por outro lado, as constituições flexíveis, assim chamadas por não dependerem de procedimento especial para reforma ou modificação, não apresentam diferença substancial em relação à lei comum, salvo pelo nome “constituição”. A flexibilidade permite alteração pelo mesmo procedimento legislativo de elaboração das leis comuns. A lei que eventualmente contrariar algum preceito de constituição flexível equivalerá, na verdade, a emenda constitucional.

Dessa forma, tudo o quanto se disser neste livro sobre inconstitucionalidade e controle da constitucionalidade significa confrontar os atos do poder público com a constituição rígida, e, cotejando seus comandos, verificar se há compatibilidade formal e material. Se do cotejamento se verificar que os atos do poder público se afastaram do que diz a constituição, por terem ido além, ficado aquém ou caminhado para fora, há inconstitucionalidade. É disso que se cuidará a seguir.

2 Ilegalidade e inconstitucionalidade

Na evolução da sociedade, o homem instituiu o Estado como nação jurídica e politicamente organizada, o qual, em regra, tem a sua forma particular de ser estruturada em um texto que se convencionou chamar constituição, que serve de condição e base de validade jurídica para todo o ordenamento jurídico, exercendo o papel de lei das leis337.

Os atos normativos regentes da conduta da sociedade são ordenamentos infraconstitucionais que têm na constituição a sua condição de validade, de modo que a conduta

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humana propriamente dita deve se conformar com eles, o que equivale a dizer que deve ser intralegal, isto é, de acordo com a lei ou ato normativo. Como esses atos normativos têm na constituição a condição de validade, a conduta humana também deve ser intraconstitucional.

Qualquer ato do poder público contrário às leis é ilegal, reparável por meio da atividade judiciária comum; mas o ato que ferir norma constitucional configura a inconstitucionalidade, reparável por procedimento geralmente diverso, por meio dos processos de controle da constitucionalidade338.

Não se confundem inconstitucionalidade e ilegalidade, decorrendo a primeira da contraposição de qualquer ato do poder público para com a constituição, e a segunda, do choque de ato de hierarquia inferior com as leis, como os decretos, as portarias, os regulamentos, as resoluções e os provimentos. É certo que esses atos podem colidir a um só tempo com a lei e com a constituição. Mesmo assim, não se cogita de inconstitucionalidade – salvo inconstitucionalidade reflexa ou indireta –, mas sim de ilegalidade.

3 Constitucionalidade, inconstitucionalidade e bloco de constitucionalidade

Constitucionalidade e inconstitucionalidade são conceitos antagônicos que residem no plano de validade das normas jurídicas infraconstitucionais. As normas compatíveis com o conteúdo expresso ou implícito da constituição e que não violarem nem mesmo as regras do processo legislativo são válidas e, por isso, constitucionais; ao contrário, as que se chocarem com a constituição sob quaisquer de seus aspectos são inconstitucionais e, por isso, inválidas339. É essencial ter em conta que os juízos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade limitam-se aos atos dos poderes públicos, não alcançando atos de particulares que, ainda quando contrários à constituição, não se sujeitam ao mesmo crivo do controle da constitucionalidade a que se sujeitam os atos públicos340.

O problema da inconstitucionalidade por violação de normas implícitas – regras ou princípios – desafia o que vem se convencionando chamar de bloco de constitucionalidade341,

que pode ser entendido como a ampliação da constituição para abarcar matérias nela não previstas expressamente, mas que não podem ficar fora do campo do controle da constitucionalidade. O leading case do bloco de constitucionalidade é uma decisão do Conselho Constitucional francês, de 16 de julho de 1971, quando, mesmo ante a falta de catálogo expresso de direitos fundamentais na Constituição de 1958, tomou o seu preâmbulo como regra-matriz para reconhecer o necessário respeito à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789342.

O Tribunal Constitucional colombiano também reconhece a existência de bloco de constitucionalidade, como se vê na sentença C-225, de 1995, relator o juiz Alejandro Martins

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Caballero, citada na nota de rodapé nº 62 “Cartilla Guía para la Caracterización e Identificación de Casos de Violaciones a los Derechos Humanos e Infracciones al Derecho Internacional Humanitario”343, citada também no artigo “Intervención de la Oficina en Colombia del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos en el Conversatorio sobre Justicia Penal Militar organizado por el Comité Institucional de Derechos Humanos y Derecho Internacional Humanitario de Antioquia”, realizado em Medellín, em 14 de setembro de 2005:

El conjunto de normas y principios que, sin aparecer formalmente en el articulado del texto constitucional, son utilizados como parámetros del control de constitucionalidad de las leyes, por cuanto han sido normativamente integrados a la Constitución, por diversas vías y por mandato de la propia Constitución.344O Supremo Tribunal Federal reconhece e adota o bloco de constitucionalidade como parâmetro para o controle da constitucionalidade, como pode ser visto em certa passagem de voto do ministro Celso de Melo na ADI 2971/MC/RO:

(...) em vez de formularem um conceito único de constituição, costumam referir-se a uma pluralidade de acepções, dando ensejo à elaboração teórica do conceito de bloco de constitucionalidade, cujo significado – revestido de maior ou de menor abrangência material – projeta-se, tal seja o sentido que se lhe dê, para além da totalidade das regras constitucionais meramente escritas e dos princípios contemplados, explícita ou implicitamente, no corpo normativo da própria constituição formal, chegando, até mesmo, a compreender normas de caráter infraconstitucional, desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da ideia de ordem constitucional global. Sob tal perspectiva, que acolhe conceitos múltiplos de constituição, pluraliza-se a noção mesma de constitucionalidade/ inconstitucionalidade, em decorrência de formulações teóricas, matizadas por visões jurídicas e ideológicas distintas, que culminam por determinar – quer elastecendo-as, quer restringindo-as – as próprias referências paradigmáticas conformadoras do significado e do conteúdo material inerentes à Carta Política.

A ideia de bloco de constitucionalidade amplia o objeto constitucional e põe por terra antiga perspectiva meramente reducionista decorrente do clássico positivismo jurídico que reduzia a constituição apenas ao texto escrito. Doravante, a constituição pode ser vista “muito mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser também entendida em função do próprio espírito que a anima, afastando-se, desse modo, de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual”345.

4 Lei ainda constitucional com trânsito para a inconstitucionalidade

Em princípio, não há meio termo entre a constitucionalidade e a inconstitucionalidade: ou a lei é compatível com a constituição e é constitucional, ou é incompatível...

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