Dignidade da Pessoa Humana

AutorGuilherme Sandoval Góes/Cleyson de Moraes Mello
Páginas299-339
Capítulo 9
Dignidade da Pessoa Humana
9.1. Construção Histórica
A análise da construção histórica da dignidade humana se impõe como ne-
cessário, pois existe uma distinção entre dignidade (a dignitas romana ou ex-
pressões gregas) como valor, honra e apreço e a expressão dignidade da pessoa
humana como inerente à própria condição humana. Aquela é condicional, tran-
sitória, inigualitária e contingente; esta é universal e incondicional. A dignidade
como valor, honra e apreço se refere a uma postura pessoal objetivamente apre-
ciada pela sociedade; já a dignidade referida a condição humana possui caráter
polissêmico e aberto encontrando-se em estado permanente de mutação e de-
senvolvimento ao longo do tempo e do espaço que está em constante concreti-
zação e delimitação pela práxis constitucional.1 Daí a importância da distinção,
pois ambas andam de mãos dadas nos dias atuais: ora a expressão dignidade
pode ser utilizada como qualidade, apreço ou status social; ora pode ser enten-
dida como ideia de igual dignidade inerente a todo e qualquer ser humano, es-
pecialmente, incorporada nos diplomas jurídico-constitucionais do segundo
pós-guerra.
Na Roma antiga, a expressão dignitas estava relacionada ao status social do
indivíduo na sociedade, tais como honra, respeito, deferência e consideração so-
cial até mesmo pela função pública que o sujeito exercia na comunidade. Era
uma espécie de status privilegiado particular que o indivíduo ostentava no seio
da sua comunidade.
De acordo com Ingo Sarlet, “no pensamento filosófico e político da antigui-
dade clássica, verificava-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia,
em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhe-
cimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em uma
quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência
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1 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a
exclusão social. In: Revista interesse público. Belo Horizonte. n. 4. 1999, p. 24.
pessoas mais dignas ou menos dignas. Por outro lado, já no pensamento estóico,
a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o
distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são
dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intima-
mente ligada à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo (o homem como
ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como a ideia de que
todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade.
Com efeito, de acordo com o jurisconsulto político e filósofo romano Marco
Túlio Cícero, é a natureza quem descreve que o homem deve levar em conta os
interesses de seus semelhantes, pelo simples fato de também serem homens,
razão pela qual todos estão sujeitos às mesmas leis naturais, de acordo com as
quais é proibido que uns prejudiquem aos outros, passagem na qual (como, de
resto, encontrada em outros autores da época) se percebe a vinculação da noção
de dignidade com a pretensão de respeito e consideração a que faz jus todo ser
humano. Assim, especialmente em relação a Roma – notadamente a partir das
formulações de Cícero, que desenvolveu um compreensão da dignidade desvin-
culada do cargo ou posição social – é possível reconhecer a coexistência de um
sentido moral (seja no que diz às virtudes pessoais do mérito, integridade, leal-
dade, entre outras, seja na acepção estóica referida) e o sociopolítico de digni-
dade (aqui no sentido da posição social e política ocupada pelo indivíduo).”2
Dessa maneira, é possível afirmar que os primórdios da dignidade da pessoa
humana encontram-se na antiguidade clássica e o seu sentido e alcance estava
relacionado à posição que cada indivíduo ocupava na sociedade. Como dito aci-
ma, a palavra dignidade provém do latim dignus que representa aquela pessoa
que merece estima e honra, ou seja, aquela pessoa que é importante em um gru-
po social.
No período medieval, a dignidade da pessoa humana passou a entrelaçar-se
aos valores inerentes à filosofia cristã. Melhor dizendo: a ideia de dignidade pas-
sa a ficar vinculada a cada individuo, lastreada no pensamento cristão em que o
homem é criação de Deus sendo salvo de sua natureza originária por Ele e pos-
suindo livre arbítrio para a tomada de suas decisões. Severino Boécio (480-524)
é o divisor de águas de dois tempos: a antiguidade e o medievo. Boécio é, pois,
o precursor da definição filosófica de pessoa (humana), embora seu desenvolvi-
mento pleno tenha se dado na metade do século XIII. O seu contributo foi si-
tuar a pessoa humana no horizonte da racionalidade a partir de sua condição de
singularidade. A partir de Boécio, a noção de pessoa como substância individual
e racional elevou o ser humano a uma nova esfera de dignidade e responsabili-
dade, implicando em nova perspectiva de ser e estar no mundo.
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2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria dos Advo-
gados; 2011, p. 34-36.
De acordo com Savian Filho3 e Ricardo Antonio Rodrigues4, “Boécio elabo-
ra no capítulo III, do texto Contra Eutychen et Nestorium a definição de Perso-
na que se tornará clássica no pensamento medieval e moderno. Já presente no
contexto das controvérsias teológicas dos primeiros séculos, em oposição com
natura (physis) e essentia (ousia), persona torno-se palavra central também
para a antropologia filosófica e teológica. Para um breve histórico dos principais
passos da evolução do conceito convém considerar que há sempre controvérsias
em torno dessa palavra, mas que passou por seu significado ligado ao teatro; sen-
tido de máscara, inclusive ligada a antiguidade Greco-romana do culto à divin-
dade Perséfone, onde a tal objeto se chamava phersu, e era usado nos rituais
religiosos; depois o próprio sentido do teatro, inclusive é essa conotação mais
aproximada se considerarmos a língua grega. O sentido geral dos romanos é que
persona não era apenas o objeto em si, mas também o papel desempenhado por
cada ator e ligando ao Direito e ao sentido político, tal máscara não caracteriza-
va algo de essencial, pois era a expressão do papel mutável e não-essencial exer-
cido por quem a usava. Tinha como uma conotação de personalidade no sentido
do não essencial. Isso em se tratando doculo I. para os gregos prosopón
tinha uma conotação que transcendia o aspecto gramatical, jurídico, religioso, e
fundava-se num caráter mais filosófico de insurreição contra o trágico da exis-
tência, que somos também contingência e isso implica numa luta para a afirma-
ção da liberdade. Parece haver uma relação entre a leitura de Boécio, Agostinho
e os padres Capadócios, pois a ideia de individualidade, substância, etc têm re-
lação direta com a leitura trinitária de Deus. Ou seja, não há como negar que a
leitura filosófica e antropológica de Boécio sobre a pessoa humana tenha um
viés fortíssimo da teologia trinitária cristã.”
Para Boécio o primordial não é o coletivo como fundamento, mas o sujeito
que pensa e reflete e, por isso, é capaz de viver em comunidade. Assim, a con-
tribuição de Boécio foi deslocar o sentido de racionalidade e individualidade
como condição primeira, destacando a noção de individualidade com o acento
na racionalidade da pessoa. Na visão do autor, as coisas inanimadas, os animais,
os vegetais não podem nunca serem elevados a condição de pessoa, mas somen-
te dos seres portadores de alma racional.5
Boécio afirma que “disso tudo decorre que, se há pessoa tão somente nas
substâncias, e naquelas racionais, e se toda substância é uma natureza, mas não
consta nos universais, e, sim, nos indivíduos, a definição que se obtém de pessoa
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3 BOÉCIO. Escritos (OPUSCULA SACRA). Tradução, introdução, estudos introdutórios
e notas Juvenal Savian Filho. Prefácio de Marilena Chauí. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p. 225-227.
4 RODRIGUES, Ricardo Antonio. Severino Boécio e a Invenção Filosófica da Dignidade
Humana. In: Seara Filosófica. N. 5, Verão, 2012, p. 3-20.
5 Ibid.

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