Filosofia do Estado e Famílias Constitucionais

AutorGuilherme Sandoval Góes/Cleyson de Moraes Mello
Páginas1-34
Capítulo 1
Filosofia do Estado e Famílias Constitucionais
1.1. Notas Introdutórias
O Estado contemporâneo vem sofrendo transformações paradigmáticas
nestes primórdios do terceiro milênio, devido especialmente ao cenário inter-
nacional hipercomplexo que o circunscreve, seja pela aceleração do processo de
globalização da economia, seja pelo avanço progressivo da internacionalização
do regime jurídico de proteção dos direitos humanos.
Com efeito, logo após o fim da Guerra Fria, o sistema mundial se tornou
mais dinâmico e competitivo, na medida em que se acelerou a abertura mundial
do comércio, patrocinada pelo projeto neoliberal, calcado na relativização do
conceito de soberania.
Na esteira desta complexidade, a dinâmica do Direito Constitucional tam-
bém se acelera, especialmente a partir da crise do Welfare State e do surgimen-
to de um novo ciclo estatal, chamado de Estado Pós-Moderno ou Estado Pós-so-
cial, paradigma que ainda não se encontra plenamente delineado, mas que já é
uma realidade irrefutável.
Com efeito, o triunfo do capitalismo liberal sobre o socialismo real criou as
condições de possibilidade da estatalidade pós-moderna, que nasce sob as ruí-
nas do Estado Social (Welfare State) e sob a égide do desprestígio do Estado
nacional dentro de um cenário pós-tudo, vale dizer um mundo que é, a um só
tempo, filosoficamente pós-moderno, juridicamente pós-positivista, midiatica-
mente pós-verdadeiro, soberanamente pós-nacional, geopoliticamente pós-bi-
polar, internacionalmente pós-americano, “jusprotetivamente” pós-constitu-
cional e estadisticamente pós-welfarista.
De fato, vive-se a era da pós-modernidade, do pós-positivismo jurídico (su-
peração da aplicação positivista da lei), da prevalência da pós-verdade (a notícia
criada suplanta a notícia verdadeira), do Estado pós-nacional (relativização do
conceito de soberania absoluta a partir do processo de globalização da econo-
mia), da pós-bipolaridade geopolítica (colapso da União Soviética e fim da
Guerra Fria), do mundo pós-americano (início da ordem mundial multipolar e
1
fim da pax americana), da pós-constitucionalidade (avanço do metaconstitucio-
nalismo e do controle de convencionalidade) e da estatalidade pós-social (crise
do Estado Social ou Welfare State). Como bem destaca Luís Roberto Barroso:
Planeta Terra. Início do século XXI. Ainda sem contato com outros mundos
habitados. Entre a luz e sombra, descortina-se a pós-modernidade. O rótulo
genérico abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão,
o desprestígio do Estado. A era da velocidade. A imagem acima do conteú-
do. O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial.
Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem
verdades seguras. Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-
kelseniana, pós-freudiana.1
De tudo se vê, portanto, essa incrível velocidade da era pós-moderna que,
em menos de duas décadas, já produziu três grandes momentos de ruptura pa-
radigmática da História da Humanidade, a saber: a queda do muro de Berlim
(1989), a queda das Torres Gêmeas (2001) e a crise financeira mundial (2008).
Tais eventos têm desdobramentos relevantes para a Ciência Política e para
o Direito Constitucional, na medida em que trazem no seu âmago a revivifica-
ção magnificada da ordem política liberal, e, especialmente, os riscos de neutra-
lização axiológica da Constituição, do abandono da proteção constitucional dos
hipossuficientes (camadas menos favorecidas do tecido social pátrio) e da miti-
gação dos direitos sociais e trabalhistas de segunda dimensão.
É nesse diapasão que surge a necessidade de e xamin ar ess e novo model o de
Estado Pós-Moderno em construção, que até o presente momento ainda se en-
contra pairando numa intensa nuvem de incerteza conceitual, carecendo, pois,
de maior desenvolvimento científico, seja no âmbito da Ciência Política, seja no
âmbito do próprio Direito Constitucional.
Observe com atenção que um dos aspectos centrais do novo Direito Consti-
tucional se refere à questão do paradigma d o Es ta do v ige nt e, s eja do p ont o de
vista de sua capacidade de salvaguardar os direitos fundamentais, e, em especial,
no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como novo eixo
axiológico do Estado contemporâneo, seja do ponto de vista do enfraquecimento
do conceito de soberania e da aceleração do processo de globalização.
Em linhas gerais, o Estado Pós-moderno entra em vigor a partir da queda do
Muro de Berlim, em 1989, e perdura até os dias de hoje. Sem embargo da rele-
2
1 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Consti-
tucional Brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: A nova interpreta-
ção constitucional. Ponderação, Direitos fundamentais e Relações Privadas. Organizador Luís
Roberto Barroso. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 2.
vância acerca da aceitação ou não do fim da Guerra Fria como marco inicial de
uma nova ordem constitucional pós-moderna, o fato é que o colapso da União
Soviética gerou grandes transformações nos diferentes arquétipos constitucio-
nais até então existentes, quais sejam o constitucionalismo liberal garantista e o
constitucionalismo social welfarista. Não se pode negar que agora o Estado Pós-
Moderno é completamente distinto desses dois modelos anteriores: o Estado
Liberal e o Estado Social.
É por tudo isso que o presente capítulo tem o objetivo de investigar a filo-
sofia do Estado e as famílias constitucionais, vale dizer examinar as característi-
cas dos diferentes modelos de Estado, desde a pré-modernidade (Estado-Cida-
de, Estado Romano e Estado Medieval) até a pós-modernidade (Estado Pós-
Moderno), perpassando, antes, pela modernidade (Estado Absoluto, Estado Li-
beral e Estado Social).
Com efeito, para compreender toda a complexidade desse Estado Pós-Mo-
derno de Direito, que chega sob os influxos de dois grandes modelos contradi-
tórios entre si, quais sejam o Estado Neoliberal de Direito e o Estado Metacons-
titucional de Direito, será necessário percorrer toda a longa trajetória da filoso-
fia do Estado e das famílias constitucionais, desde seus primórdios até os dias de
hoje.
A figura abaixo sintetiza o perfil de evolução do Estado ao longo da His-
tória, destacando bem as fases de pré-modernidade, modernidade e pós-mo-
dernidade.
Vamos em seguida examinar cada uma dessas famílias constitucionais,
desde o constitucionalismo clássico grego até o constitucionalismo da mo-
dernidade.
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