Poder Constituinte

AutorGuilherme Sandoval Góes/Cleyson de Moraes Mello
Páginas45-91
Capítulo 3
Poder Constituinte
3.1. Origem, natureza e classificação do Poder Constituinte
O Estado Moderno nasce com a Paz de Vestfália de 1648, evento histórico
que marca o fim do Estado Medieval e o nascimento do Estado Absoluto, aqui
nesse momento já caracterizado como Estado Nacional propriamente dito.
Com efeito, pela primeira vez no âmbito da Filosofia do Estado, verificase a
coexistência dos três elementos essenciais formadores da estatalidade moder-
na, quais sejam: o povo, o território e a soberania una e indivisível (poder sobe-
rano).
Nesse sentido, Hans Kelsen destaca que a teorização dos três elementos es-
senciais viabiliza a ideia de Estado como ordem jurídica, in verbis:
Se o Estado é uma ordem jurídica, então deve ser possível transformar os
problemas que surgem dentro de uma teoria geral do Estado em problemas que
façam sentido dentro da teoria geral do Direito. Deve ser possível apresentar
todas as propriedades do Estado como propriedades de uma ordem jurídica.
Quais são, então, as propriedades características de um Estado? A doutrina tra-
dicional distingue três “elementos”: seu território, seu povo e seu poder.1
Seguindo esta posição clássica, em regra, não haverá Estado se faltar al-gum
destes elementos essenciais, dentre eles, o povo, aqui vislumbrado como o titu-
lar do Poder Constituinte originário, um poder de fato que não se submete ao
direito anterior e capaz de criar um novo Estado focado na busca do bem co-
mum.2
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1 KELSEN, Hans. Teoria geral do estado e do direito. Tradução Luís Carlos Borges, São
Paulo: Martins fontes, 1990, p. 207.
2 Isso significa dizer que o povo, naturalmente livre, deve em nome do bem comum
condescender na contenção de interesses individuais e na redução de sua esfera de liberdade.
Para que estas ideias sejam materializadas, impõe-se que o povo, titular do poder constituinte
originário, por meio de seus representantes reunidos em assembleia constituinte, elabore um
conjunto de regras estruturais do Estado, aparelhando-o no plano inter-no e na esfera interna-
É nesse diapasão que o povo reunido, diretamente ou através de repre-
sentantes políticos, deve constituir uma Assembleia Nacional Constituinte,
também denominada Congresso Nacional Constituinte, com o desiderato de
elaborar as normas da nova Constituição, fazendo com que surja um novo Esta-
do, isto é, uma nova pessoa política estatal. Sempre que se elabora uma nova
Constituição, nasce um novo Estado.
O grande teorizador da doutrina do Poder Constituinte foi o abade Em-ma-
nuel-Joseph Sieyès (1748-1836),3 com sua obra denominada Qu’est-ce que le
tiers état? ou A Constituinte Burguesa: o que é o Terceiro Estado?4, publicada
poucos meses antes da eclosão da Revolução Francesa. A Constituição francesa
é de 1791.
O principal objetivo do pensamento político-jurídico de Sieyès era reduzir
o poder do Estado Absoluto, e, por via de consequência, aumentar a proteção
dos direitos e garantias individuais. Seu alicerce residia na crença de que a titu-
laridade do poder emanava da nação, atrelando-se definitivamente à soberania
do Estado.
O processo constituinte deflagrou o movimento revolucionário francês ten-
do como marco inicial a convocação dos Estados-Gerais, cujo desfecho, ocorri-
do seis semanas após tal convocação, autorizou os mandatários da burguesia a se
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cional no trato com os demais Estados nacionais. Portanto, o Estado, assim criado, realizará o
bem comum submetido aos limites e às condições estipuladas pela Constituição, norma
superior a todos os poderes constituídos. Eis aqui caracterizado aquele poder soberano como
propriedade essencial do Estado, um poder ilimitado que dimana do povo e foi que revelado
pelo Poder Constituinte originário.
3 José Ribas Vieira, no prefácio da obra de Sieyès, A Constituição Burguesa: Quest-ce que
le Tiers État?, informa que “Sieyès, filho de um coletor de direitos reais, nasceu em 13 de
maio de 1748 em Fréjurs-en-Provence. Entrou para a carreira eclesiástica como uma forma de
encontrar uma melhor oportunidade de ascensão social dentro de uma família bastante
numerosa com parcos recursos financeiros. Dessa forma, o autor preparou para ser padre sem
a mínima vocação, animado somente por uma ambição sem limites. Entre-tanto, através da
correspondência com seu pai, podemos avaliar como esta carreira foi para Sieyès brutal e
frustrante. Seus primeiros passos na estrutura eclesiástica ocorreram na região de Tréguier.
Todavia, a serviço do bispo de Lubersac ele sai de Tréguier para Chartres. Nessa caminhada,
é de ser refletido que, finalmente, este ambicioso abade termina por se projetar na carreira
eclesiástica. É na véspera da Revolução de 1789 que se pode compreender como o autor é um
homem afortunado, pelos seguintes motivos: gozando das boas graças dos altos prelados e
membro de uma loja maçônica, participante de clubes e salões à moda de Paris. Enfim, é na
qualidade de vigário-geral da diocese de Chartres que ele participa da Assembleia Provincial
de Orléans ao abrir os seus debates em 6 de setembro de 1787.” VIEIRA, José Ribas.
Prefácio. In: SIEYÈS, Emmanuel-Joseph. A Constituição Burguesa: Quest-ce que le Tiers
État? 3.ed. Tradução Norma Azeredo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 18.
4 Terceiro Estado indicava as pessoas que não faziam parte do Clero (Primeiro Estado) e
da Nobreza (Segundo Estado).
autoproclamarem membros de uma Assembleia Nacional Constituinte, no-
meando uma comissão com vistas a elaborar um projeto de Constituição.
Para o abade de Sieyès, o Poder Constituinte originário representava um
modo de legitimação do poder político da nação (seu titular), que criava uma
nova ordem para a sociedade, quebrando com uma ordem eminentemente tra-
dicional (dinástica) anterior. Neste sentido, o Poder Constituinte originário se-
ria um poder de fato, ou seja, uma manifestação extrajurídica derivada do poder
revolucionário.5
Logo, não teria derivação em qualquer norma do ordenamento jurídico de-
posto. Frise-se que a Nação foi colocada em destaque, substituindo o funda-
mento de toda a ordem social e normativa encontrada no Deus transcendente.
A ordem jurídica fundamentada na legitimação monárquica perde força uma
vez que todos deveriam ser iguais em direitos e deveres, já que faziam parte da
mesma nação. Dessa maneira, uma ordem jurídica legítima deveria refletir os
anseios da nação. Esta é o titular do poder constituinte para Sieyès e não o povo.
Vale destacar que Sieyès não considerou as características sociológicas ou antro-
pológicas (por exemplo, união cultural, linguística e étnica) do povo ou mem-
bros do território.
Dessa maneira, após a identificação do terceiro estado como nação, o abade
Sieyès apresenta a distinção entre o Poder Constituinte e o Poder Constituído.
O primeiro seria incondicionado, inaugural e permanente, representando a von-
tade da nação e os limites seriam postos pelo direito natural. Já o poder consti-
tuído receberia suas competências do Poder Constituinte originário. Neste mo-
mento Sieyès apresenta a ideia de representação política e soberania nacional.
Observe que nesse sentido a teorização de Sieyès afasta a questão da jusfun-
damentalidade material dos direitos naturais do homem das chamadas doutri-
nas teocráticas do poder, cujo fulcro estava na crença de um Poder Constituinte
originário supra-humano (omnis potesta a Deo), de um Deus transcendente.6
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5 Manoel Gonçalves Ferreira Filho explica que Sieyès faz uma diferenciação entre nação e
povo: “Povo, para ele, é o conjunto dos indivíduos, é um mero coletivo, uma reunião de
indivíduos que estão sujeitos a um poder. Ao passo que a nação é mais do que isso, porque a
nação é a encarnação de uma comunidade em sua permanência, nos seus interesses constan-
tes, interesses que eventualmente não se confundem nem se reduzem aos interesses dos
indivíduos que a compõem em determinado instante.” FERREIRA FILHO, Ma-noel Gonçal-
ves. O Poder Constituinte. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 23.
6 No início, vigorava a escola do direito divino sobrenatural que justificava a gênese do
poder político a partir de uma hierarquia social criada por vontade de Deus, ou seja, Deus
designava para cada sociedade política a pessoa que deveria exercer o poder, ou, pelo me-nos,
a família de onde deveria sair tal monarca. Cf. AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado.
44.ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 56.

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