Do bem de família aos bens existenciais da pessoa humana

AutorNelson Rosenvald
Páginas433-458
Capítulo 17
DO BEM DE FAMÍLIA AOS BENS EXISTENCIAIS
DA PESSOA HUMANA
Nelson Rosenvald
SUMÁRIO: 1. Evolução do conceito de bem jurídico. 2. Evolução da função do
patrimônio. 3. O patrimônio mínimo existencial. 4. O paradigma da essenciali-
dade. 5. O bem de família. 6. O bem mínimo existencial. 7. A ponderação entre
a tutela do bem existencial e o direito ao crédito. 8. O paradigma da essenciali-
dade e a aplicação dos direitos fundamentais na órbita privada. 9. Os limites à
aplicação dos direitos fundamentais nas lides envolvendo a impenhorabilidade
do bem imóvel existencial. 10. Do bem de família aos bens mínimos exist-
enciais. 11. Questões processuais. 12. Conclusão.
1. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO
É adequado afirmar que, em sentido amplíssimo, o conceito de bem cor-
responde àquilo que nos apetece. Há muito percebeu Clóvis Beviláqua que o
bem “é tudo quanto corresponde à solicitação de nossos desejos”.1
Na esfera jurídica, todavia, o bem é tido como aquele que seja remetido
à posição de objeto de relações jurídicas. Quando nossos desejos, valores e
ideais são amparados pela ordem jurídica, o bem da vida se converte em bem
jurídico. Portanto, sendo qualquer relação jurídica criada para o atendimento
de interesses jurídicos relevantes, são estes interesses que constituirão o ob-
jeto da relação. Para a sua satisfação, serão atribuídas aos seus titulares situa-
ções jurídicas ativas e passivas (direitos, deveres, ônus, faculdades, etc.).
Apesar de não existir uma teoria geral do objeto do direito – até mesmo
pela heterogeneidade que ele pode assumir –, não podemos negar que em
toda a trajetória do direito um dos conceitos mais impactados pelos seguidos
influxos renovatórios foi o do bem jurídico, até mesmo pela constante muta-
ção das formas de riqueza na vida social.
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1 Cf. BEVILAQUA, Clovis. Teoria geral do direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Paulo
de Azevedo, 1955, p. 213.
Se na antiga Roma grande relevo era concedido aos bens móveis, como
animais, armas e utensílios, na Idade Média a propriedade imobiliária se con-
verte em bem jurídico prioritário e fonte de poder político de senhores feu-
dais. A seu turno, a modernidade redescobre o valor dos bens móveis – sobre-
maneira o das ações –, colocando-os em posição de igualdade aos bens da raiz.
Por fim, a pós-modernidade opta deliberadamente pela fluidez e portabilida-
de dos bens móveis (capitais, software, patente, direitos autorais).
Com relativa segurança, pode-se afirmar que o bem jurídico passou a ser
classificado como gênero e a coisa como uma espécie restrita a bens corpó-
reos dotados de economicidade.2 Assim, não apenas coisas são bens, como
também créditos (prestações). O patrimônio de conteúdo imaterial artístico,
científico e literário é bem jurídico de natureza intangível, assim como as
abstrações que se relacionam à pessoa humana.
Em um momento mais recente, as Constituições maximalistas propõem
uma vigorosa compreensão de bem jurídico, aproximando-o de valores de in-
teresse coletivo e indisponível, como o meio ambiente, a saúde e a informa-
ção. Tais bens se encontram excluídos de detenção privada. A qualidade de
vida se impõe como bem jurídico cada vez mais escasso e, portanto, essencial.
Posta a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) como valor su-
premo da ordem constitucional, todo o direito privado a ela necessariamente
se curva e inexoravelmente há um abalo na concepção de bem jurídico.
Em um primeiro momento, voltou-se a doutrina ao estudo da repersona-
lização do direito privado, pela identificação e exame detido dos bens jurídi-
cos da personalidade, tais como o corpo, nome, honra, imagem e privacidade
(art. 13 a 21 do CC). A tutela das situações existenciais demanda de toda a
coletividade um dever genérico de abstenção, como premissa inarredável de
preservação dos bens jurídicos que figuram como objeto das emanações da
dignidade de cada ser humano. Trata-se de bens jurídicos que escapam da
lógica da apropriação, eis que toda pessoa é tutelada pelo que é, inde-
pendente daquilo que venha a ter.
Porém, a remodelação conceitual do bem jurídico não se limita à aferição
de sua expansão ao setor dos direitos da personalidade e da tutela de uma
esfera jurídica de interesses. Indo além, não há receio em se afirmar que a
autonomia negocial deixa de ser um valor em si, pois todas as situações jurí-
dicas patrimoniais se submetem ao quadro de valores constitucionais.
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2 Antonio Menezes Cordeiro frisa que, “apesar das flutuações lingüísticas, parece
ocorrer uma certa tendência coloquial para restringir coisa às realidades corpóreas, en-
quanto os bens se alargam a realidades imateriais ou humanas. Fala-se, pois, em bens ima-
teriais ou bens da personalidade, em conjunções nas quais o termo coisa ficaria inadequa-
do ou deva mesmo ser evitado”. CORDEIRO, Antônio Menezes. Tratado de direito civil
português. Coimbra: Almedina, 2005, p. 24.

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