Família homoafetiva

AutorMaria Berenice Dias
Páginas151-173
Capítulo 6
FAMÍLIA HOMOAFETIVA
Maria Berenice Dias
SUMÁRIO: 1. Família e afetividade. 2. Liberdade e igualdade. 3. Direito à se-
xualidade. 4. Homoafetividade. 5. Uniões homoafetivas. 6. Homoparentalida-
de. 7. Avanços jurisprudenciais. 8. Estatuto da Diversidade Sexual.
1. FAMÍLIA E AFETIVIDADE
A tendência de engessamento dos vínculos afetivos sempre existiu, va-
riando segundo valores culturais e, principalmente, influências religiosas do-
minantes em cada época. No mundo ocidental, tanto o Estado como a Igreja
buscam limitar o exercício da sexualidade ao casamento. Ora identificado
como uma instituição, ora nominado como contrato – o mais solene que exis-
te no ordenamento jurídico –, o casamento é regulamentado exaustivamen-
te: impedimentos, celebração, efeitos de ordem patrimonial e obrigacional.
A própria postura dos cô njuges é determinada pela lei, que impõe deveres e
assegura direitos de natureza pessoal, como, por exemplo, o dever de fideli-
dade.
O casamento inicialmente era indissolúvel. A família, consagrada pela lei,
tinha um modelo conservador: entidade matrimonial, patriarcal, patrimo-
nial, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. O vínculo que nascia da li-
vre vontade dos nubentes era mantido, independente e até contra a vontade
dos cônjuges. Mesmo após o advento da Lei do Divórcio, a separação e o di-
vórcio só são deferidos quando decorridos determinados prazos ou mediante
a identificação de um culpado. Quem não tem motivo para atribuir ao outro
a culpa pelo fim do casamento não pode tomar a iniciativa do processo de
separação, o que evidencia a intenção do legislador de punir quem simples-
mente não mais quer continuar casado.
A sacralização do casamento e a tentativa de sua mantença como única
estrutura de convívio lícita e digna de aceitação fez com que os relacionamen-
tos chamados de marginais ou ilegítimos, por fugirem do molde legal, não
fossem reconhecidos, sujeitando seus atores a severas sanções.
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Os vínculos afetivos extramatrimoniais, por não serem admitidos como
família, eram condenados à invisibilidade. Ainda assim, existiam. Chamada
a Justiça para solver as questões de ordem patrimonial, com a só preocupa-
ção de não chancelar o enriquecimento sem causa, primeiro foi identificada
uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor.
Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, consi-
derando uma sociedade de fato, o que nada mais era do que uma sociedade
de afeto.
O Direito das Famílias, ao receber o influxo do Direito Constitucional,
foi alvo de profunda transformação, que ocasionou verdadeira revolução ao
banir discriminações no campo das relações familiares. “Num único dispo-
sitivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito”.1 Foi
derrogada toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem
como a que estabelecia diferenciações entre os filhos pelo vínculo existente
entre os pais. Também se alargou o conceito de família para além do casa-
mento.
Mesmo quando a Constituição inseriu no conceito de entidade familiar o
que chamou de união estável, houve resistência em migrar as demandas para
o âmbito do Direito das Famílias. Apesar dos protestos da doutrina, as uniões
continuaram sendo vistas como sociedades de fato e julgadas segundo o Di-
reito das Obrigações. A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem
identificadas como entidades familiares revela a tendência de sacralizar o
conceito de família. Mesmo inexistindo qualquer diferença estrutural com os
relacionamentos oficializados, a sistemática negativa de estender a estes no-
vos arranjos os regramentos do direito familiar, nem ao menos por analogia,
mostra a tentativa de preservação da instituição da família dentro dos pa-
drões convencionais. Porém, como adverte Paulo Lôbo, “não há necessidade
de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia socieda-
de de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lu-
crativo”.2
A Constituição, ao outorgar proteção à família, independentemente da
celebração do casamento, vincou um novo conceito de entidade familiar, al-
bergando vínculos afetivos outros. Mas é meramente exemplificativo o enun-
ciado constitucional ao fazer referência expressa à união estável entre um ho-
mem e uma mulher e às relações de um dos ascendentes com sua prole. “O
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1 VELOSO, Zeno. Homossexualidade e direito. Jornal O Liberal. Belém do Pará, 22
maio 1999.
2 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e cidadania: Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 2002, p. 101.

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