Horizontes de aplicação da adoção no direito de família brasileiro contemporâneo

AutorRenata de Lima Rodrigues
Páginas287-312
Capítulo 13
HORIZONTES DE APLICAÇÃO DA ADOÇÃO
NO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO
Renata de Lima Rodrigues
É comum a gente sonhar, eu sei,
Quando vem o entardecer;
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer.
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com um pranto a mim correr
E assim chorando acalentar
O filho que eu quero ter.
Dorme, meu pequenininho
Dorme, que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem.
(O filho que eu quero ter – Vinícius de Moraes)
SUMÁRIO: 1. Estabelecendo premissas: filiação e socioafetividade. 2. Caracte-
rísticas gerais do instituto da adoção. 3. Identificando problemas. 3.1. Efeitos
colaterais do princípio da igualdade. 3.2. Mitigação do instituto frente à evolu-
ção de técnicas de reprodução assistida. 3.3. Realidade social versus realidade
institucional. 4. Natureza jurídica da adoção: uma questão de ordem pública ou
de autonomia privada? 5. Adoção por casais homoafetivos: um novo desafio ou
um falso problema? 5.1. Entidades familiares homoafetivas e o direito ao livre
planejamento familiar. 5.2. Homoafetividade e exercício da autoridade paren-
tal. 6. A nova lei nacional de adoção: algumas críticas às recentes modificações
introduzidas no instituto. 7. Conclusão.
1. ESTABELECENDO PREMISSAS: FILIAçãO E SOCIOAFETIVIDADE
Vive-se um momento profícuo para a discussão de premissas que envol-
vem o estabelecimento de vínculos parentais e questões que concernem à fi-
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liação. A superação do tradicional conceito liberal de família, estruturado so-
bre relações de ascendência e descendência biológica, exige das relações pa-
rentais elementos que transcendem a simples consanguinidade.1
O direito de família contemporâneo, porque fundado em uma principio-
logia renovada, vem firmando tendência em atribuir aos laços socioafetivos o
status de um de seus principais alicerces. No contrapasso da evolução tecno-
lógica e das ciências biológicas, a dignidade humana e a afetividade são fun-
damentos para o estabelecimento do estado de filiação, obrigando a que to-
dos os institutos relacionados à afirmação de vínculos parentais sejam revisi-
tados, no intuito de emprestar ao ordenamento jurídico sistematicidade,
coerência e efetividade.
Certo é que o instituto da adoção é, por essência, expressão de solidarie-
dade e afeto,2 refletindo a principiologia constitucional que impulsiona o di-
reito de família brasileiro. Todavia, revolvendo-se a história, por fatores e cir-
cunstâncias de origens variadas, é possível constatar que o instituto enfren-
tou momentos de prestígio e de desprestígio.3
Entretanto, hodiernamente, diante da consolidação de novos institutos,
novas técnicas e do crescente reconhecimento dos efeitos jurídicos do paren-
tesco socioafetivo,4 é preciso indagar acerca de sua colocação dentro do sis-
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1 Para José dos Santos Silveira, “é necessário que a relação natural ou real surja com
valor e eficácia perante o ordenamento jurídico, na vida das relações sociais, e alcance
foros ou dignidade de vínculo jurídico” (SILVEIRA, José dos Santos. Investigação de pa-
ternidade ilegítima. Coimbra: Atlântida, 1971, p. 11).
2 Segundo estudo de Pedro Belmiro Welter, a adoção seria uma das espécies do gêne-
ro filiação socioafetiva, por transcender a vinculação biológica: “A filiação socioafetiva
compreende a relação jurídica de afeto com o filho de criação, quando comprovado o
estado de filho afetivo[...], a adoção judicial, o reconhecimento voluntário ou judicial da
paternidade ou maternidade e a conhecida ‘adoção a brasileira’.” (WELTER, Pedro Bel-
miro. Igualdade entre filiação biológica e socioafetiva. Revista Brasileira de Direito de
Família. Porto Alegre, n. 14, jul./set. 2002, p. 132)
3 Suas origens históricas mais remotas remetem a épocas anteriores ao próprio Direito
Romano, que, assim como o Direito Grego e o Direito Germânico, atribuía relativo pres-
tígio ao instituto, o qual cumpria a finalidade de perpetuar a família e o culto aos ances-
trais domésticos. Todavia, a partir da Idade Média atravessou longo período de declínio:
“Na Idade média caiu em desuso, até que desapareceu completamente. O direito canô-
nico ignorou-a, tendo em vista que a família cristã repousa no sacramento do matrimô-
nio. [...] Mas adquiriu prestígio no direito moderno e entre nós reestruturou-a o Código
de 1916, à moda romana, posto que abolindo aquelas distinções especiosas.” (PEREIRA,
Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006,
v. 5, p. 388)
4 O parentesco socioafetivo é mencionado nesse trabalho em seu sentido mais estrito,
ou seja, naqueles casos em que mesmo não havendo nenhum vínculo biológico, ou mes-
mo jurídico (decorrente de eventual reconhecimento voluntário ou da própria adoção),

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