A nova família, de novo - estruturas e função das famílias contemporâneas

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Páginas1-30
Capítulo 1
A NOVA FAMÍLIA, DE NOVO – ESTRUTURAS E
FUNÇÃO DAS FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEAS
Maria Celina Bodin de Moraes
Com licença, eu vou à luta.
(é ilegal ser menor?)*
– E. Maciel
Marriage is a great institution,
but who wants to live in an institution?
G. Marx
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O valor e a função da família democrática. 3. A
relação entre saúde psíquica individual, ambiente familiar e democracia. 4. O
problema da responsabilidade parental. 5. A crise do conceito de incapacidade
por idade. 6. O movimento em direção à maior autonomia nas relações conju-
gais. 7. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da Re-
pública no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988 – dispositivo inicial-
mente recebido com certo ceticismo – mostrou-se uma conquista decisiva,
que revolucionou a ordem jurídica privada.1 A opção do constituinte ao ele-
var tal princípio ao topo do ordenamento modificou radicalmente a estrutura
até então vigente no direito brasileiro; sem dúvida, os efeitos desta alteração
* Este artigo foi publicado originalmente na Pensar – Revista de Ciências Jurídicas,
Fortaleza, v. 18, n. 2, maio/agosto de 2013, p. 587-628.
** Título do livro autobiográfico de Eliane Maciel, lançado pela Editora Rocco em
1970, e levado ao cinema em 1986, sob a direção de L. Farias.
1 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas.
Rio de Janeiro: Renovar, 1990.
1
na interpretação-aplicação dos institutos jurídicos, em especial dos de direito
civil, têm sido notáveis, e ainda não se encontram inteiramente concluídos.
Do ponto de vista do direito de família, a proposta de constitucionaliza-
ção dá sinais de ampla e acelerada consolidação, tendo tomado por base a
cláusula geral de tutela da pessoa humana, bem como dois marcantes dispo-
sitivos constitucionais: o art. 226, §5º da Constituição, que estabeleceu a
igualdade dos cônjuges no casamento, e o art. 227, que atribuiu aos filhos a
posição de centralidade no grupo familiar, garantindo “absoluta prioridade”
às crianças e aos adolescentes. O patriarcalismo, como se sabe, fundava-se na
tripla desigualdade de homens em relação a mulheres, de pais em relação a
filhos e de heterossexuais em relação a homossexuais.2 Para fazer frente à
estrutura patriarcal então vigente, o constituinte pôs fim, nos aludidos dispo-
sitivos, a duas dessas desigualdades.
Quanto à terceira desigualdade, ao se ampliarem as formas de organiza-
ção da família (art. 226, §§ 3º e 4º), abriu-se o texto constitucional à possibi-
lidade de proteção de novas estruturas familiares.3 Foi essa a tese aceita pelo
STF para garantir o direito à união homoafetiva no país: em maio de 2011, ao
julgar a ADIn 4.277 e a ADPF 132, a Corte reconheceu, por unanimidade, a
constitucionalidade da união entre pessoas do mesmo sexo.4 Para alguns, ain-
da haveria distinção entre a união estável e o casamento de pessoas do mesmo
sexo, uma vez que a decisão do Supremo não fizera qualquer menção ao ca-
samento. No entanto, na sessão de 14 de maio de 2013, o CNJ aprovou, por
substancial maioria (14 a 1), resolução para obrigar os cartórios do país a ha-
bilitar e celebrar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a conver-
ter a união estável homoafetiva em casamento.5
O modelo adotado pelo constituinte pressupõe justamente a existência de
uma pluralidade de estruturas familiares (ditas redes ou enxames), nenhuma
2
2 SINGLY, François de. La réinvention de la famille. Label France, n. 39, 2000.
3 BODIN DE MORAES, Maria Celina. A união entre pessoas do mesmo sexo: uma
análise civil-constitucional. Revista trimestral de direito civil. Rio de Janeiro, n. 1, 2000,
p. 89-112.
4 O relator das ações, Min. Ayres Britto, votou no sentido de dar interpretação con-
forme a Constituição para excluir qualquer significado do art. 1.723 do CC, que fosse
impeditivo desse reconhecimento à união entre pessoas do mesmo sexo, em particular a
sua interpretação literal. O relator sustentou que o art. 3º, IV, da Constituição veda qual-
quer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser
diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual: “O sexo das pessoas,
salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica” afirmou, para con-
cluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide frontalmente com o
art. 3º, IV, da Constituição.
5 Resolução nº 175/2013, que proíbe as autoridades competentes a se recusarem a
habilitar, celebrar casamento civil ou de converter união estável em casamento entre pes-
soas de mesmo sexo.

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