As fronteiras da responsabilidade civil e o princípio da liberdade

AutorCarlos Eduardo Pianovski Ruzyk
Ocupação do AutorProfessor de Direito Civil da UFPR
Páginas37-56
AS FRONTEIRAS DA RESPONSABILIDADE
CIVIL E O PRINCÍPIO DA LIBERDADE
Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk
Professor de Direito Civil da UFPR. Doutor e Mestre em Direito Civil pela UFPR.
Presidente do IBDFAM/PR. Membro do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil
– IBERC. Advogado e Árbitro.
Sumário: 1. Introdução. 2. A liberdade juridicamente protegida e seus múltiplos pers na
dimensão funcional do direito civil. 3. A responsabilidade civil como instrumento de proteção
da liberdade. 3.1 Liberdade positiva, liberdade substancial e dano ao projeto de vida. 3.2 Dano
à liberdade de denição do projeto parental, no âmbito do planejamento familiar. 3.3 Dano
à liberdade de locomoção do trabalhador. 3.4 Dano à liberdade substancial da pessoa com
deciência. 4. A expansão das fronteiras da responsabilidade civil como risco à liberdade. 4.1
A responsabilidade civil por dano presumido como instância reguladora de comportamentos
ilícitos, e a responsabilidade civil em demandas frívolas. 4.2 A responsabilidade civil pela
dissolução da sociedade conjugal em decorrência da violação de deveres conjugais. 4.3 A
responsabilidade civil por dano moral coletivo e a liberdade de expressão. 5. Conclusão.
6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Responsabilidade civil e liberdade são conceitos cujos caminhos, historicamente,
se entrelaçam.
A clássica construção da responsabilidade subjetiva é uma resposta jurídica ao agir
culposo ou doloso que, no mau uso da liberdade, enseja danos, impondo ao agente o de-
ver de repará-los. Sem a culpa, prevaleceria a liberdade centrada no interesse individual,
sem que se materializasse o dever de indenizar.1 Liberdade e responsabilidade, pois, na
origem do Direito Civil Moderno, notadamente aquele que emerge da Code Napoleón,
são “noções intimamente vinculadas”, no dizer de Anderson Schreiber2.
A responsabilidade objetiva, a seu turno, se desloca dessa fundamentação, para
centrar-se menos na conduta do agente e mais no dano gerado à vítima, em virtude da
materialização de riscos, com a caracterização do nexo causal, independentemente de
culpa.
1. É o que relata Aguiar Dias, ao versar, criticamente, sobre os opositores da teoria da responsabilidade objetiva no
desenvolvimento doutrinário da disciplina no Direito Francês. AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil.
IX ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87.
2. SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da erosão dos f‌iltros da reparação à diluição
dos danos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 12.
CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK
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Ainda que, contemporaneamente, os modelos de responsabilidade objetiva e
subjetiva coexistam no ordenamento jurídico3 – com especial relevância quantitativa
das hipóteses concretas que ensejam a primeira –, é possível constatar a relevância da
relação entre liberdade e responsabilidade civil sob outro viés, que não se confunde com
o fundamento da responsabilidade subjetiva.
Trata-se de investigar como a reponsabilidade civil, notadamente no contexto das
transformações contemporâneas que implicam uma expansão de suas fronteiras, pode
ser instrumento de proteção à liberdade e, de outro lado, como ela pode ser uma ameaça
a essa garantia constitucional.
O dano pode ser, em si mesmo, ofensa à liberdade, e, nessa medida, as repostas da
responsabilidade civil – sejam reparatórias, sejam inibitórias/preventivas – podem vir
em proteção a esse princípio.
A expansão de fronteiras da responsabilidade civil, com a emergência de “novos
danos” e “diluição de seus f‌iltros” clássicos – para empregar a feliz expressão de Ander-
son Schreiber –, pode ensejar, pois, um paradoxo, a desaf‌iar os estudiosos sobre o tema.
Ao mesmo tempo em que essa expansão de fronteiras pode ser instrumental à proteção
da liberdade, em seus diferentes perf‌is, pode ser ela, também, instrumento que enseja o
risco de a responsabilidade civil se converter em algoz da liberdade.
O que se pretende por meio deste ensaio é formular algumas ref‌lexões sobre como a
responsabilidade civil pode ser instrumento de proteção da liberdade e, ao mesmo tem-
po, pode ser instrumento para tolher, de modo desproporcional, essa mesma liberdade.
O escopo deste texto não é versar sobre a liberdade de ir e vir frente ao Estado,
notadamente quanto ao expresso dispositivo constante do inciso LXXV do artigo 5º da
Constituição, que se refere à prisão por erro judiciário ou por tempo superior ao f‌ixado na
sentença, mas, sim, sobre outras expressões da liberdade que, na expansão das fronteiras
responsabilidade civil, podem encontrar lugar de tutela ou de ameaça.
Para essa f‌inalidade, principia-se por breve explicitação instrumental sobre o que
entendemos como liberdade, para, em um segundo momento, expor exemplif‌icativamente
como a responsabilidade civil pode ser instrumento de proteção à liberdade – ou, ao menos,
de resposta à sua violação – e, ao f‌inal, suscitar problemas que podem emergir da expansão
das fronteiras da responsabilidade civil em colisão com a liberdade em seus diferentes perf‌is.
2. A LIBERDADE JURIDICAMENTE PROTEGIDA E SEUS MÚLTIPLOS PERFIS NA
DIMENSÃO FUNCIONAL DO DIREITO CIVIL
A responsabilidade civil, como instituto integrante do Direito Civil,4 não se afasta
da ratio estrutural própria das relações interprivadas, nem tampouco, da dimensão fun-
cional que é inerente a essas relações.
3. Com efeito, como explica Gustavo Tepedino, consolida-se no Direito brasileiro um modelo dualista, sobretudo
diante da cláusula geral do artigo 927, parágrafo único do Código Civil de 2002. TEPEDINO, Gustavo. Temas de
Direito Civil. Tomo I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 195.
4. Mesmo a responsabilidade civil do Estado, ainda que sujeita a regras próprias, se submete aos princípios da teoria
geral da responsabilidade civil. FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; ROSENVALD,
Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2015, p. 1009.

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