Seguro e responsabilidade civil

AutorMaria Inês de Oliveira Martins
Ocupação do AutorDoutora em Direito e professora da universidade de Coimbra
Páginas327-359
SEGURO E RESPONSABILIDADE CIVIL
Maria Inês de Oliveira Martins
Doutora em Direito e professora da universidade de Coimbra.
Sumário: I. Introdução e esclarecimentos terminológicos. II. Seguro e responsabilidade
civil: reparação e prevenção, similitude e distância. 1. O sentido da função reparatória,
no seguro e na responsabilidade civil. 2. O sentido de uma função preventiva, no seguro
e na responsabilidade civil. 3. Apreciação. III. A interferência do seguro no instituto da
RC. 1. Introdução e indicação da sequência. 2. O seguro no ambiente da responsabilidade
civil por facto culposo. 3. O seguro no ambiente da responsabilidade objectiva. 4. Seguro
como mecanismo substitutivo da responsabilidade civil. IV. Considerações conclusivas.
I. INTRODUÇÃO E ESCLARECIMENTOS TERMINOLÓGICOS
1.O presente texto trata a interacção entre o contrato de seguro e as regras da
responsabilidade civil. A questão poderia ter sido abordada por diversos prismas –
por exemplo, pelo da responsabilidade civil contratual, que convive com os seguros
de caução e de crédito.Não foi, porém, esse o ângulo que nos pareceu mais profícuo.
Juntando-nos a um já longo caudal de produção, analisaremos a questão da produção
dos danos acidentais, enquanto aqueles que surgem no contexto de actividades que,
embora se caracterizem por um nível elevado de risco, a colectividade tem interesse
em prosseguir. As questões da ciber-segurança, bem como das alterações climáticas,
recordam-nos em permanência de que as ameaças com que lidamos têm um potencial
alcance catastróf‌ico – e que a ordem jurídica deve colocar o seu instrumentário ao
serviço da prevenção dos seus efeitos e da distribuição equitativa das suas consequ-
ências.Não trataremos de um destes âmbitos em particular, por acharmos que tem
interesse manter uma visão geral sobre a comparação e actuação mútua do seguro e da
responsabilidade. Mas a sua presença em pano de fundo leva-nos a não querer perder
de vista o potencial preventivo dos dois conjuntos normativos, a par de os analisarmos
enquanto mecanismos de compensação.
Em toda a exposição, não se deve perder de vista que o seguro e a responsabilidade
civil não são ilhas no ordenamento jurídico – são apenas um dos seus territórios, não
se devendo pedir deles aquilo para que não estão vocacionados. Para situar a análise,
começaremos, pois, por analisar o modo como cada uma das duas f‌iguras se coloca ao
serviço de f‌inalidades compensatórias e preventivas. Daqui partiremos para a análise da
sua interacção, e procuraremos extrair conclusões no f‌inal.
MARIA INÊS DE OLIVEIRA MARTINS
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II. SEGURO E RESPONSABILIDADE CIVIL: REPARAÇÃO E PREVENÇÃO,
SIMILITUDE E DISTÂNCIA
1. O sentido da função reparatória, no seguro e na responsabilidade civil
2.Tanto o seguro, como a responsabilidade civil, são mecanismos pelos quais se
procede à reparação de um dano–o que, visto de outro ângulo, não é mais que a deslo-
cação das consequências danosas para uma esfera diferente da primariamente atingida
por elas. Caso funcione o mecanismo da responsabilidade civil, o deslocamento dá-se
para a esfera do sujeito que o Direito objectivo considera responsável pelo dano. Pelo
mecanismo do seguro, o deslocamento dá-se para a esfera de um sujeito (o segurador)
que contratualmente assumiu, contra pagamento, o dever de tomar a seu cargo certos
danos potenciais.
Esta visão pela perspectivada relação obrigacional não deve porém, obscurecer uma
primeira diferença fundamental: por baixo do contrato de seguro estão os mecanismos
pelos quais o segurador f‌inancia a cobertura, e que na verdade supõem a distribuição
dos riscos por vários patrimónios. Já a responsabilidade civil intervém depois do dano,
e fá-lo dano transitar por inteiro para a esfera do responsável. Vejamos melhor.
Pelo contrato de seguro organiza-se a resposta a danos eventuais. Para lhes dar res-
posta, o segurador deve aprovisionar um montante correspondente às perdas que espera
sofrer em carteira. E fá-lo em primeira linharepartindo as perdas esperadas face a certo
segmento da sua carteira – calculadas através de métodos que combinam a estatística e
a estimativa – pelos segurados correspondentes. A soma do prémio pago por todos eles
permitirá cobrir as perdas esperadas, embora nem todos venham a sofrer sinistros no
futuro: fala-se por isso a este respeito de uma comunidade de risco, uma mutualidade.
Com isto vemos já o mecanismo de dispersão do risco por vários patrimónios, que infor-
ma a técnica seguradora tradicional. Tal dispersão do risco pode ainda convocar outros
agentes: os resseguradores, que são os seguradores do segurador, face ao risco que este
tomou em carteira; outros seguradores que tomem o risco conjuntamente com ele, nas
hipóteses de co-seguro; e investidores nos mercados f‌inanceiros, que se disponham a
adquirir posições em contratos derivados sobre variáveis que afectem o risco seguro
(por exemplo, climáticas). Na verdade, quando se trate de um risco singular, pelas suas
características idiossincráticas, pela sua novidade ou pelo seu grande vulto, não haverá
segurados portadores de risco paralelo, sendo o segurador remetido a dispersar o risco
para fora da mutualidade.
Em suma: a transferência do risco para um segurador implica no fundo que o dano
será disperso por vários patrimónios, afeiçoando-se a soluções em que a compensação do
dano – se se quiser, as razões da justiça distributiva –, mais do que a sua imputação a um
responsável – se se quiser, as razões da justiça correctiva –, seja a f‌inalidade prioritária1.
1. Embora a menção dos dois grandes referentes, da justiça correctiva e da justiça distributiva, seja praticamente
incontornável num texto sobre responsabilidade civil e seguro, usá-los-emos com cautela e apenas enquanto
tópicos que sinalizam um sentido geral. Desde logo, porque não há apenas uma, mas várias concepções de cada
um desses referentes, sendo que algumas delas levam mesmo todo o sentido de um dos tópicos para o âmbito
de inf‌luência do outro (cfr. JULES COLEMAN/SCOTT HERSHOVITZ/GABRIEL MENDLOW, “Theories of the
common law of torts”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2015, disponível em https://plato.stanford.edu/entries/
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Com efeito, o contrato está construído sobre a necessidade de f‌inanciamento de sinistros
futuros, ao passo que o lesante poderá não ter património bastante para a responsabilidade
que cai por inteiro sobre ele.
3. Importa, contudo, marcar as vincadasdistâncias entre o sentido da compensação ao
abrigo do contrato de seguro e da compensação ao abrigo das regras da responsabilidade.
O uso de terminologia comum, referindo-se em ambos os casos uma “indemnização”,
que afronta um “dano”, leva muitas vezes a operar como se o fundamento da prestação
indemnizatória fosse idêntico em ambos os casos. Ora, ele é bem diferente: no caso do
contrato de seguro, o segurador presta ao abrigo do cumprimento de um dever principal
de prestação, em contrapartida do qual recebeu um prémio. A referência à “indemnização”
apenas explica o modo como, nos seguros de danos, a dimensão da prestação do segurador
é determinada: ela não deve ultrapassar a dimensão do dano sofrido.
Porém, essa referência é equívoca se se pensar que indica a fonte de tal dever.
Quando falamos na indemnização em sentido técnico, curamos de um dever imposto
pela lei, perante alesão de um direito ou interesse alheio (dentro ou fora de uma relação
especial). Estaremos no domínio da heteronomia. Quando o segurador repara o dano,
fá-lo em cumprimento de um acto de autonomia privada: porque, ao abrigo do contrato,
se comprometeu, contra pagamento, a arcar com o risco de ocorrência de um evento
incerto, suportando as respectivas consequências económicas.
Sendo recortado por partes contratuais, que organizam um modo de afrontar a
incerteza, o “dano” no Direito do seguro tão-pouco coincide com o dano para efeitos
de indemnização. Assim, aquilo a que a prestação seguradora visa responder é à produ-
ção – ao menos, potencial – de consequências desfavoráveis, mesmo que decorram de
um evento desejado (pense-se, por exemplo, no seguro que cubra as despesas médicas
associadas ao nascimento de um f‌ilho). Não se trata aqui, pois, de responder às conse-
quências da violação de um direito ou interesse. De resto, os seguros podem dar lugar
ao pagamento de uma soma pré-f‌ixada – serão então seguros de somas ou capitais, ao
serviço de f‌inalidades de previdênciaou poupança privada.
Acresce que, mesmo quando estamos perante seguros de danos, as regras de cálculo
não são as da responsabilidade civil: desta é próprio o princípio da reparação integral do
dano (art. 562.º do Cód. civil), ao passo que é próprio do seguro o princípio da partilha do
risco entre segurado e segurador. O contrato visa que o segurado continue substancialmente
interessado em que o risco não se materialize, para que não se torne leviano, ou mesmo
oportunista face à sua verif‌icação (veja-se o art. 49.º, n.º 3, do RJCS). Por isso, deixa que
parte do dano recaia em def‌initivo na esfera do seguradopara que este tenha incentivo a
preveni-lo. As cláusulas que f‌ixam esse valor, em termos absolutos ou percentuais, desig-
nam-se normalmente por cláusulas de franquia (sem que haja, porém, uma terminologia
tort-theories/ (consultado pela última vez a 02.10.2019), ponto 3.1.3). Depois, porque eles apontam a fundamen-
tação das soluções num nível muito geral, ao passo que uma análise minimamente útil dos problemas aqui em
causa reclama um nível de maior concretude (sobre este tema, em língua portuguesa, por todos, PAULO MOTA
PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, I, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 828
e ss.). No texto, referiremos a justiça correctiva no sentido amplo de ela determinar a reposição da perda injusta
sofrida por um dos membros da comunidade à custa de quem a causou; e a justiça distributiva no sentido amplo de
ela determinar uma partilha justa de recursos, de base, entre os membros da comunidade.

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