Capítulo 17: Da 'invasão' daaméricaaos sistemas penais de hoje: o discurso da 'inferioridade' latino-americana

AutorJosé Carlos Moreira da Silva Filho
Ocupação do AutorProfessor e Pesquisador da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC RS). Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UFSC. Doutor em Direito na UFPR. Autor dos livros: Filosofia Jurídica da Alteridade. Curitiba: Juruá, 1998 e Hermenêutica Filosófica e Direito. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; __.Justiça de Transi...
Páginas417-466
Capítulo 17
DA “INvASãO” DA AMéRICA
AOS SISTEMAS pENAIS DE HOjE:
O DISCURSO DA “INFERIORIDADE”
LATINO-AMERICANA
josé CArlos moreirA dA silVA Filho
1
sumário: 1. Introdução. 2. O eurocentrismo da visão mo-
derna. 3. O mundo de Colombo: o conquistador europeu e o
genocídio colonial. 4. O debate de Valladolid: Bar tolomé de
Las Casas e a questão da igualdade dos índios. 5. A cultura
ameríndia e o m do “quinto sol”. 6. A cultura sincrética da
periferia: os vários “rostos” latino-americanos. 7. Os genocí-
dios coloniais e as práticas exterminadoras dos sistemas penais.
8. Conclusão. 9. Referências bibliográcas.
1. INTRODUçãO
Aideiacentraldestetextosurgiudealgumasreexõesfeitaspor
Eugenio Raúl Zaffaroni, em seu livro Em busca das penas perdidas,
acerca do sistema penal na América Latina. É certo que as matrizes
teóricas utilizadas pelos nossos juristas e operadores do sistema pe-
nal provêm do pensamento primeiro-mundista, inclusive o núcleo dos
apontamentos críticos para a superação de discursos obsoletos nesta
área. Mas também é certo que só aqui, no mundo periférico, estes sabe-
res adquiriram um caráter extremamente peculiar e cruel, implicando
1 Professor e Pesquisador da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica
(PUCRS).MestreemTeoriaeFilosoadoDireitopelaUFSC. DoutoremDireito
naUFPR.Autordoslivros:FilosoaJurídicadaAlteridade.Curitiba:Juruá,1998e
HermenêuticaFilosócaeDireito.2.ed.,RiodeJaneiro:LumenJuris,2006;__.Jus-
tiça de Transição: da ditadura civil-militar ao debate justransicional. Porto alegre;
Livraria do Advogado, 2015.
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José Carlos Moreira da silva Filho
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uma prática de extermínio em massa e de segregação social em esca-
las sem precedentes. Na verdade, como assinalou o jurista argentino,
o sistema teórico latino-americano na área penal é de um sincretismo
assombroso, que, no fundo, esconde um discurso extremamente racis-
ta,denaturezapsicobiológicaedeexclusão,ou,comodiriaolósofo
argentino Enrique Dussel, de “ocultamento do outro”.
Para um melhor entendimento dessa situação faz-se necessário ter
conhecimento do processo histórico-social que nos conduziu até o pre-
sente momento. Não se está aqui abordando a história como uma ideia
de progresso; muito pelo contrário, o que se intenta é repisar o argumen-
tode quemuitos aspectossombrios damodernidadeecamuadosda
história fazem, na verdade, parte de uma ideologia que se irá chamar de
eurocentrismo.Comessetermo,congura-setodaavisãohistóricaque
parte de uma perspectiva unilateral daqueles povos que em 1492 mar-
caram à cruz e à espada o que viria a ser designado de América Latina.
Na verdade, no núcleo da ideia de progresso existe o encobrimento de
muitos sujeitos da “comunidade de comunicação ideal” (Karl O. Apel),
seja pela falácia desenvolvimentista, seja pela ideologia racista que, de
forma avassaladora, perpassa os nossos sistemas punitivos.
Para compreender, portanto, não só a situação dos sistemas penais
latino-americanos e de suas práticas genocidas, mas também a própria
situação periférica ou “marginal”, como diria Zaffaroni, é imprescin-
dível retornar ao marco de 1492 para captar corretamente o que se
passou nestes 500 anos.
Desde essa época fundou-se um saber antropológico aplicado à
periferia. Esse saber primeiramente adotou uma roupagem teológica,
oraclassicandoosíndiosdecriaturas“puras”e“infantis”,oracon-
cebendo-oscomobárbaros,pagãoseadoradoresdodemônio.Aquela
época, que precedia o auge do mercantilismo, já demonstrava sinais
de decadência da própria visão teológica de mundo e trazia as semen-
tes do que veio a ser chamado de era moderna. Assim, logo depois, o
saberantropológicodeinspiraçãoreligiosadeulugaràmatrizcienti-
cista naturalista. E, a partir daí, o índio e depois os negros, mestiços e
latino-americanos foram atingidos pelo rótulo de seres “naturalmente
inferiores”. De maneira geral, no período da conquista, o índio era
visto como um ser passivo, incapaz de se tornar sujeito de sua própria
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história. Esta imagem permanece até os dias de hoje e estende-se ao lati-
no-americano em geral. Na verdade, a realidade dos fatos contradiz esse
entendimento, recuperando a “história invisível” da conquista, o processo
de resistência militar e, principalmente, cultural dos povos ameríndios.
O que se observa de forma emblemática no sistema penal latino-
americanoéo“mitosacrical”dequefalaDussel,ouseja,anegação
da “outra face da modernidade”. Para que se possa, numa perspectiva
dusseliana de transmodernidade, superar a visão eurocentrista, extir-
par a nota genocida de nossos sistemas penais, é imprescindível a
desmisticaçãodefaláciasdesenvolvimentistasedevisõeshistóricas
que transformaram a “invasão” da América em sua “descoberta”.
2. O EUROCENTRISMO DA vISãO MODERNA
Adotando a visão de Enrique Dussel, pode-se dizer que o eurocen-
trismo é, basicamente, uma visão histórica do mundo que transforma o
“ser” do “outro” em um “ser” de “si-mesmo”. Nessa visão, ao se fazer
a apologia da modernidade, entende-se que todos os “avanços” que
ela representa constituem o resultado de um desenvolvimento natural
do próprio “ser europeu”, sem levar em consideração a existência da
América ou da África – a Ásia é reconhecida como o começo da his-
tória, mas permanece em um estado infantil e primitivo.2 Incorre-se,
portanto, na falácia desenvolvimentista.
2 Enrique Dussel nos traz a seguinte citação de Hegel: “O mundo se divide em Velho
Mundo e Novo Mundo. O nome Novo Mundo provém do fato de que a América (...)
não foi conhecida até há pouco pelos europeus. Mas não se acredite que a distinção
é puramente externa. Aqui a divisão é essencial. Este mundo é novo não só relati-
vamente mas também absolutamente; o é com respeito a todos os seus caracteres
próprios, físicos e políticos. O mar de ilhas, que se estende entre a América do Sul
e a Ásia, revela certa imaturidade no tocante também a sua origem (...). A Nova
Holandatambém não deixa de apresentarcaracterísticas de juventude geográca
pois se, partindo das possessões inglesas, penetramos em seu território, descobri-
mos enormes rios que ainda não abriram seu leito (...). Da América e de seu grau
de civilização, especialmente no México e Peru, temos informações a respeito de
seu desenvolvimento, mas como uma cultura inteiramente particular, que expira no
momento em que o Espírito se aproxima dela (...). A inferioridade destes indivíduos
é, em tudo, inteiramente evidente” (DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do
outro (a origem do mito da modernidade). Conferências de Frankfurt. Trad. Jaime.
A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 18-19).
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