Capítulo 23: Uma introdução à história social e política do processo

AutorJosé Reinaldo de Lima Lopes
Ocupação do AutorProfessor Titular de Filosofia e Teoria do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor entre outros de O Direito na história: lições introdutórias (S. Paulo, Atlas, 2017, 6a. ed.), Curso de História do Direito (S. Paulo, Método, 3. ed.), As Palavras e a lei (S. Paulo, Ed. 34, 2004), O Oráculo de Delfos - Conselho de ...
Páginas579-614
Capítulo 23
UMA INTRODUçãO à HISTÓRIA
SOCIAL E pOLíTICA DO pROCESSO
josé reinAldo de limA loPes
1
sumário: 1. Introdução. 2. A prossionalização e os lei-
gos na história do processo. 3. Modelo adversário-acusatório
e modelo inquisitório. 4. O objeto do processo. 5. As funções
judiciais. 6. O desenvolvimento do processo moderno na tra-
dição da common law; 6.1 Estados Unidos; 6.2 Inglaterra. 7. O
processo brasileiro: desenvolvimento histórico. 8. Conclusão.
9. Referências bibliográcas.
1. INTRODUçãO
Desde quando os Estados estão envolvidos no processo e na má-
quina de fazer justiça? Talvez, em primeiro lugar, seja preciso explicar
que nem todos estão de acordo quanto à própria existência do Estado
ao longo do tempo, ou melhor, quanto às origens do Estado. Como ex-
plica Bobbio (BOBBIO, s/d), discute-se muitas vezes se antes do Es-
tado moderno seria possível falar propriamente em Estado. A questão
1 ProfessorTitulardeFilosoaeTeoriadoDireitodaFaculdadedeDireitodaUniver-
sidade de São Paulo. Autor entre outros de O Direito na história: lições introdutórias
(S. Paulo, Atlas, 2017, 6a. ed.), Curso de História do Direito (S. Paulo, Método,
3. ed.), As Palavras e a lei (S. Paulo, Ed. 34, 2004), O Oráculo de Delfos - Con-
selho de Estado e direito no Brasil-Império (S. Paulo, Saraiva, 2010), O Supre-
mo Tribunal de Justiça do Império 1828-1889 (co-editor com A. Slemian e P. M.
Garcia Neto, S.Paulo, Saraiva, 2010), Naturalismo jurídico no pensamento brasileiro
(S. Paulo, Saraiva, 2014), e História da justiça e do processo no Brasil do século XIX
(Curitiba, Juruá, 2017). Foi professor visitante na Universidade da California - San
Diego (1995), Universidade de Munique (2002), Universidade Nacional da Colombia
(2001-2003), Universidade de Toulouse (2016) e Universidade de Bordeaux (2018).
Foi também pesquisador visitante na Universidade de Roma - La Sapienza (2009)..
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José Reinaldo de lima lopes
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depende,comoeleesclarece,dadenição dada ao Estado, a qual ter-
mina sendo estipulativa. O fato inegável é que o direito da autoridade
políticadejulgaremúltimainstânciaasdisputaseconitosentreos
cidadãos consolida-se com o desenvolvimento da forma moderna de
Estado, a começar lentamente na Baixa Idade Média, com a progres-
siva centralização monárquica e nacional da Europa Ocidental.
Antes disso, várias formas de adjudicação haviam surgido, liga-
das a autoridades, mas distantes ou diferentes da nossa adjudicação
estatal. Nas socie dades do oriente antigo, pastoris e agrárias, espe-
cialmente sociedades de aldeia, parte considerável das disputas entre
particulares eram resolvidas por autoridades, árbitros, conselheiros
locais. O conselho dos sábios ou dos velhos exercia a função judi-
cante,ora mediando,orajulgando.Nesse sentido, oresciamaisou
menos a justiça do cádi, de que fala Max Weber.2
Essas comunidades de aldeia fundavam-se, como tendem a fundar-se
até hoje, em controles sociais muito próximos, tradicionais e comunitá-
rios.Anecessidadederegrasabstratas,autônomaseformais,taiscomo
pensadas hoje, inexistia. As regras confundiam-se com as máximas mo-
rais, não por defeito ou falta, mas porque o controle social comunitário
expressava-se com clareza nesta esfera moral, em decisões ad hoc. Já
quando as relações se estabeleciam entre diferentes comunidades de al-
deia (federações de diversas origens e formas) ou quando se referiam ao
sistemaqueintegravaaldeias ecidades(forticadas) eimpérios,uma
certa burocracia é criada: os sátrapas, os governadores, os procuradores
eram responsáveis por um sistema de administração, coleta de impos-
tos, recrutamento militar, uso de terras e recursos de irrigação, impondo
novasrestrições e criando novos campos de conito, para osquaisa
autoridadedaaldeianãopodiater vozativa. Signicativadessa novi-
dade foi a história do profetismo em Israel: o discurso dos profetas era
vazado na linguagem moral (e jurídica, se quisermos) da resistência a
este novo poder que vinha da cidade, do palácio, do império, dos con-
selheiros do rei, dos astutos escribas, etc.
A relação Estado/processo não é a única que interessa. A história do
processo pode ser traçada também em termos de quem o domina, ou
seja, de quem são os atores relevantes no seu desenvolvimento. E deste
ponto de vista pode-se analisar a diferença entre o sistema acusatório ou
2 WEBER, M. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1976.
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inquisitorial e o sistema adversário ou duelístico. O primeiro dominou
a tradição continental europeia, o segundo dominou a tradição inglesa.
Pode-setambémperceberqueaprossionalizaçãocrescentedosatores
relevantes (advogados, juízes, promotores, cartorários, policiais) acom-
panhou o desenvolvimento das formas estatais modernas. O Direito do
antigo regime, por seu turno, foi obrigado a conviver com os não pro-
ssionais:viveuumconitopermanenteentreduasformasdepoder.3
De um lado, como impedir,numa sociedade estraticada, esta-
mental e pouco urbanizada (como as sociedades europeias e respec-
tivascolôniasamericanas),queomandonismoeosenhoriolocalse
apropriassem da justiça? De outro lado, como evitar que a centraliza-
çãoeaprossionalizaçãoalienassemopovo,ouocidadãoordinário,
das funções públicas da administração da justiça? Ao longo da histó-
ria, a presença dos leigos ou a participação popular na administração
da justiça assumiu diversas formas.
2. A pROFISSIONALIzAçãO E OS LEIGOS NA HISTÓRIA
DO pROCESSO
EmAtenasnãohouveaprossionalizaçãodoDireito.Osescrito-
res de discursos (de acusação ou defesa, os logographoi) – acusados
de buscarem cada vez mais a beleza e o efeito emocional do discurso,
antes que a verdade – talvez fossem treinados na arte argumentativa
usada nas disputas judiciais, mas não se tratava de pessoas forma-
das em escolas jurídicas propriamente ditas. A tradição grega, espe-
cicamentea ateniense, distinguiu claramente, a partir de um certo
momento, as questões entre os particulares, cuja resolução devia ser
deixada especialmente aos árbitros, um terceiro igual (socialmente)
aos litigantes, das questões que afetavam a vida da comunhão política
(polis ou koinonia politika) diretamente, a ser tratada no grande tri-
bunal assemblear dos Heliastas. Por volta de 450 a.C., a assembleia
ateniense dispunha de jurisdição geral sobre casos civis e penais, de-
cidindo em grandes seções (dikasteria) de números variados (201,
301, 401, 501 membros). Qualquer cidadão ateniense maior de 30
anos, quites com a cidade e no gozo de seus direitos, era elegível:
3 HESPANHA, A. M . História das instituições. Coimbra: Almedina, 1982.
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