Capítulo 19: O Direito nas missões jesuíticas da américa do sul

AutorThais Luzia Colaço
Ocupação do AutorProfessora Titular Aposentada dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Foi professora do Mestrado em Direitos Humanos da UNESC-SC. Mestre em História. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. PósDoutora pela Universidade de Sevilha (Espanha). Autora do livro: 'Incapacidade' Indígena: Tutela Religiosa e ...
Páginas481-514
Capítulo 19
O DIREITO NAS MISSÕES
JESUÍTICAS DA AMÉRICA DO SUL
thAis luziA ColAÇo
1
sumário: 1. Introdução. 2. Organização interna político-ad-
ministrativo-jurídica; 2.1 O Regimento das Missões; 2.2 O Re-
ducionismo; 2.3 A Organização do Cabildo. 3. O Direito Civil
nas Missões; 3.1 O Sistema de propriedade; 3.2 As Relações de
Trabalho; 3.3 A Família. 4. O Direito Penal nas Missões; 4.1 O
Sistema de Vigilância; 4.2 A ideia de pecado; 4.3 A Liberdade
Individual; 4.4 O Sistema de Punições. 5. Conclusão. 6. Refe-
rências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Com a tomada de Constantinopla pelos turcos no início da Idade
Moder na, os europeus buscam outro caminho para chegar até o Orien-
te além do Mar Mediterrâneo. Imbuídos no espírito mercantilista, os
países ibéricos (Portugal e Espanha) foram os pioneiros nesta emprei-
tada marítima pelo Oceano Atlântico. Descobriram novos continentes
e chegaram ao Oriente, levando homens para ocupar outras terras e
“conquistar” outros povos pela guerra e pela catequização; aumen-
tando suas riquezas, pela ampliação das fontes de matéria-prima e de
mão de obra, e pela criação de um novo mercado consumidor.
1 Professora Titular Aposentada dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito
da UFSC. Foi professora do Mestrado em Direitos Humanos da UNESC-SC. Mestre
em História. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-
Doutora pela Universidade de Sevilha (Espanha). Autora do livro: “Incapacidade”
Indígena: Tutela Religiosa e Violação do Direito Guarani nas Missões Jesuíticas.
Curitiba: Juruá, 2000. Organizadora dos livros: Aprendendo a Ensinar Direito o Di-
reito. Florianópolis: OAB/SC, 2006; Elementos de Antropologia Jurídica. Florianó-
polis: Conceito, 2008.
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A disputa entre os países ibéricos pelo domínio das terras desco-
bertas e das não descobertas inicia com a chegada dos europeus na
América. Diante das divergências foi necessária a interferência do
PontíceRomanocomomediador.
O Papa Alexandre VI sancionou em 1493 a bula Inter Caetera,
favorável aos interesses espanhóis, com a condição de que eles levas-
sem missionários ao Novo Mundo, com o objetivo de difundir a fé
católica aos seus habitantes.
Imbuídos do espírito de propagadores da fé cristã além dos limi-
tes europeus, os jesuítas dirigem-se para a América. Chegam ao Bra-
sil em 1549, acompanhando o primeiro Governador-Geral, Tomé de
Sousa. Somente em 1566 o Conselho das Índias autoriza a vinda dos
membros da Companhia de Jesus à América Espanhola. Chegam a
Lima em 1568, dedicando-se quase que exclusivamente ao ensino.
Em 1607 é criada a Província Jesuítica do Paraguai, que seria ocupada
pelos integrantes da Companhia de Jesus até 1768, data da sua expulsão
da região platina. Entre 1609 a 1706 os inacianos fundaram as chamadas
“Missões Jesuíticas do Paraguai” ou os “Trinta Povos das Missões”2, es-
tendendo-se do Guairá, no Paraná, ao sul do Mato Grosso do Sul, Para-
guai, nordeste da Argentina e Rio Grande do Sul e Uruguai.3
Na América, os jesuítas, serviram aos interesses coloniais das
monarquias ibéricas, ocupando o território, ampliando e defenden-
doassuasfronteiras,“pacicando”osindígenase,principalmente,
2 Na realidade, foram fundadas mais de 30 reduções, mas muitas vezes eram destruí-
das, principalmente pelos ataques dos bandeirantes paulistas, sendo fundadas nova-
mente em outras localidades. Esse fato gerou algumas contradições entre os diversos
autores que tratam do assunto, em relação às datas de fundação e à quantidade de
reduções existentes. No entanto, foram 30 reduções aproximadamente, que subsisti-
ram e prosperaram.
3 QUEVEDO, Júlio. As missões:criseseredenições.SãoPaulo:Ática,1993,p.8-9.
Pelo Tratado de Madri em 1750, houve a troca entre as coroas ibéricas, do território
dosSetePovosdasMissões pelaColônia doSacramento. Osíndios rebelaram-se,
e o exército português e o espanhol uniram-se para combatê-los, desencadeando a
Guerra Guaranítica. Em 1761 o Tratado de Madri foi anulado e somente em 1801,
peloTratadodeBadajós,oterritóriodosSetePovosfoidenitivamenteanexadoao
domínio português. (VERRI, Liane Maria. A história das missões do Rio Grande do
Sul. Anais do Curso de Literatura e História do Rio Grande do Sul. Santo Ângelo:
FURI, 1990, p. 68-70)
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exercendoopodertutelareatuandocomoecienteveículodedivul-
gação da cultura cristã ocidental.
2. ORGANIZAÇÃO INTERNA POLÍTICO-
ADMINISTRATIVO-JURÍDICA
2.1 O Regimento das Missões
À época do descobrimento da América era incipiente o Estado
Espanhol, formado pelo casamento dos reis católicos Isabel de Cas-
tela e Fernando de Aragão. Nesse período se destaca o nacionalismo
eclesiásticoecomeçaadeclinaropoderdoDireitocanônico.
Apesar da união dos dois monarcas, cada um de seus reinos conti-
nuou com sua própria personalidade política e administrativa. As terras
de Castela se mantiveram regidas pelo Direito aragonês, o cata lão e o
valenciano.Os territóriosdasÍndias Ocidentaiscaramsubordinados
ao Direito castelhano e não aos demais direitos espanhóis, por ter sido
a rainha Isabel quem patrocinou as viagens de Colombo. Porém, em
decorrênciadasexigênciasdonovoambientesocial,geográcoeeco-
nômico,foinecessáriaaelaboraçãodenormasjurídicas especícas,o
chamado Direito Indiano.
Assim, a vigência das leis castelhanas nas Índias alcançou um cará-
ter supletório, mas elas continuaram a ser consultadas devido a pouca
ou nenhuma existência de fontes peculiares do Direito Indiano.
Inseridos neste contexto os jesuítas aceitavam o estatuto legal
do Estado Espanhol, acreditavam na monarquia originária do Di-
reito divino e cumpriam as suas normas jurídicas porque entendiam
a “competência destas regras estabelecidas racionalmente”, devido
as suas características peculiares de obediência, hierarquia e lega-
lismo.4 Mas, apesar de toda esta submissão à monarquia espanhola,
comparadosa outras ordens religiosas, exerciamcerta inuência
sobre a administração burocrática espanhola.
Desta forma, tornavam inoperante ou atenuavam “as medidas
que contrariavam seus interesses ou os objetivos da própria ação
4 KERN, Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982, p. 70.
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