Capítulo 3: O direito hebraico antigo

AutorMarcos Antônio de Souza
Ocupação do AutorLicenciado em Letras Português/Inglês. Doutor em Linguística na UFSC.
Páginas45-76
Capítulo 3
O DIREITO HEBRAICO ANTIGO
mArCos Antônio de souzA
1
sumário: 1. Introdução. 2. Tanakh – A Fonte do Direi-
to Hebraico. 3. Introdução ao Talmud. 4. História de Israel.
5. O Direito Hebraico; 5.1 Código de leis; 5.2 Administra-
ção da justiça; 5.3 Relações civis; 5.4 Crimes e punições.
6. Conclusão. 7. Referências bibliográcas.
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1. INTRODUÇÃO
O estudo do Direito hebraico antigo possui alguns paralelos em
relação ao Direito grego antigo, mas, por outro lado, apresenta tam-
bém inúmeras particularidades que o tornam bastante especial e desa-
adoratodoaquelequesepropõeestudá-lo.Umparalelonoestudo
do Direito dessas duas civilizações antigas é o fato de não existir uma
literaturajurídicaespecícaescritaporjuristaseestudiososdalei.Se
existiu, não sobreviveu até nossos dias. Da mesma forma, a história
dessas duas civilizações abrange um período de tempo demasiada-
mentelongo,implicandoem signicativasdiferençasentreotipode
Direito praticado em diferentes momentos da história, resultante, em
parte, do sistema de organização política da época. Por exemplo, o
1 Licenciado em Letras Português/Inglês. Doutor em Linguística na UFSC.
2 “E que grande nação tem decretos e decisões judiciais tão justos quanto as leis que
euponhodiantedevóshoje?”(Deuteronômio4:8).AscitaçõesdaBíbliasãofeitas
da Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas por ser uma tradução bastante
literal e traduzir as palavras MyqiHu por decretos, MyFiPAw4mi por decisões judiciais e
hrAOT por leis, diferenciando-as adequadamente.
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Marcos antônio de souza
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períododeexíliodosjudeusnaBabilôniaeseuposteriorretornosob
a tutela dos medos-persas, autorizado por Artaxerxes, introduziu prá-
ticas que alterou o sistema de punição até então utilizado.
Por outro lado, enquanto não se pode falar de um sistema único
de Direito para a Grécia antiga, devido ao seu sistema de polis in-
dependentes, já a história do Direito hebraico se caracteriza por um
sistema único, mesmo no período de confederação das doze tribos e
dos reinos independentes de Israel e Judá. Entretanto, a grande dife-
rença entre as duas civilizações, que determina o tipo de estudo de
suas histórias, da língua e do Direito, é a que diz respeito às fontes.
Essa diferença se deve ao fato de que enquanto os gregos antigos nos
legaram uma extensa e rica literatura, gramáticas, os discursos dos
oradoresáticos,textoslosócos,tragédiasecomédiasque,dealgu-
ma forma, supre a ausência de textos jurídicos e permite um estudo
bastante preciso da língua grega antiga, a civilização hebraica apenas
nos legou um conjunto de 24 documentos3 que, reunidos, são conhe-
cidos como Bíblia Hebraica (Velho Testamento) no mundo cristão ou
Tanakh pelos judeus. Nesse aspecto, tanto para o estudo da língua he-
braica antiga quanto para o estudo do Direito hebraico antigo, a Bíblia
funciona como uma ilha por ser o único documento hebraico antigo
disponível para consulta. No estudo da língua impõe-se como língua
literária, não permitindo conhecer diferentes estilos e de formas de
língua falada, além do problema das hapax legomena. Já no estudo do
Direito, resulta em uma grande quantidade de lacunas, de inferências
eindenições, nãohavendooutros textosemque sepossaprocurar
um complemento das informações disponíveis ou corroboração do
entendimento assumido.
Apesar dessas limitações e mesmo o estudo do Direito hebraico
antigo somente ser possível graças a existência da Bíblia Hebraica ou
Tanakh, ainda assim encontra-se em grande vantagem quanto ao es-
tudo do Direito em relação às outras civilizações como Mesopotâmia,
Egito e Medo-Persia no que diz respeito às fontes.
3 Conforme veremos mais adiante, são 24 para a Bíblia judaica, 39 para a Bíblia cató-
lica e 46 para a Bíblia protestante (ou Bíblias resultantes da Reforma).
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2. TANAKHA FONTE DO DIREITO HEBRAICO
Sendo a parte hebraica da Bíblia (Tanakh) a única fonte para o
estudo do Direito hebraico antigo e devido às circunstâncias em que
foi escrita, transmitida e conservada, isto devido a sua característica
de livro sagrado, necessitamos estabelecer uma linha divisória entre
o sagrado e o profano. Isto é, fazer a análise dos dados referentes à
identicaçãoe compreensãodo Direitoindependentede convicções
religiosas,deixando adiscussãoda inuência deDeusna história e
noDireitoparaoteólogoeolósofo.OescritoringlêsGilbertKeith
Chesterton (1874-1936), em uma de suas estórias policiais com o per-
sonagem padre Brown, apresenta uma situação em que o inspetor de
polícia ouvindo de um ferreiro, acusado de homicídio, que fora o pró-
prio Deus que abatera a vítima com o martelo, responde: “Esse agente
está fora de minha jurisdição”4. Assim faremos nós, neste estudo so-
bre o Direito bíblico antigo, deixaremos Deus fora dessa jurisdição.
Apesar da popularidade que a Bíblia possui, da grande quantidade
deidiomasparaosquaisfoitraduzida(maisdedoismil),dainuên-
cia que tem exercido e ainda exerce em grande número de pessoas, é
um livro pouco conhecido como fonte de estudo do Direito hebraico
antigo. Mesmo como literatura, tem sido uma forma de estudo recen-
te. John B. Gabel e Charles B. Wheeler, em seu livro A Bíblia como
literatura, destacam a Bíblia como fonte de estudos para muito mais
do que se possa entender como literatura.
Usamos o termo ‘literatura’ em seu sentido mais amplo. Há um sentido mais
estrito que abrange apenas o que se conhece como belles lettres, isto é, poe-
sia, contos, romances, peças teatrais, ensaios. Embora a Bíblia contenha esse
tipo de material, também há nela genealogias, leis, epístolas, decretos reais,
instruções para construção, orações, sabedoria proverbial, mensagens profé-
ticas, narrativas históricas, relações tribais, dados de arquivo, regulamentos
rituaiseoutrostiposdematerialmaisdifíceisdeclassicar.5
4 “That agent is outside my jurisdiction.” Essa passagem se encontra na estória “The
hammer of God”, publicada em The Innocence of Father Brown editado por Pen-
guin, p. 187. Ver também Father Brown: Selected Stories, editado por Wordsworth,
p. 88. Em português, as estórias de Father Brown de Chesterton foram publicadas
pela Ediouro em uma série de dez volumes. M. A. Beek utiliza esse mesmo argu-
mento em sua História de Israel, p. 10.
5 GABEL, J. B. & C. B. WHEELER. A Bíblia como literatura, p. 18.
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