A ilusão da responsabilidade limitada e o problema dos créditos trabalhistas na recuperação judicial

AutorLuciana Celidonio e Rodrigo Saraiva Porto Garcia
Ocupação do AutorMestranda em Direito Comercial pela USP. LL.M. em Business and Economics pela Georgetown University Law Center. Especialista em Direito Societa?rio pela GV-Law. Advogada. / Doutorando em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito da Empresa e Atividades Econômicas pela UERJ. Advogado.
Páginas257-284
A ILUSÃO DA RESPONSABILIDADE LIMITADA
E O PROBLEMA DOS CRÉDITOS TRABALHISTAS
NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Luciana Celidonio
Mestranda em Direito Comercial pela USP. LL.M. em Business and Economics
pela Georgetown University Law Center. Especialista em Direito Societário
pela GV-Law. Advogada.
E-mail: lcdn@ bmalaw.com.br.
Rodrigo Saraiva Porto Garcia
Doutorando em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito da Empresa e
Atividades Econômicas pela UERJ. Advogado.
E-mail: rgarcia@gc.com.br.
Sumário: Introdução – 1. A responsabilidade limitada é mesmo limitada? – 2. O problema dos
créditos trabalhistas na recuperação judicial; 2.1 A sucessão na venda de ativos e o reconhe-
cimento de grupo econômico pela Justiça do Trabalho – 3. Uma possível solução: a vedação
à imputação de responsabilidade prevista no art. 6º-C da Lei 11.101/2005 – 4. Conclusão – 5.
Referências bibliográcas.
INTRODUÇÃO
Diante da situação de crise da empresa, credores, contratantes e sócios do
devedor iniciam uma corrida em busca dos ativos para satisfazer seus interesses
individuais – seja por meio da execução individual de um crédito pelo credor,
da rescisão do contrato pelo contratante, ou da saída do sócio da companhia. É
a conhecida tragédia dos comuns, que se observa quando diversos indivíduos
têm acesso a um mesmo conjunto de bens, comuns a todos eles, mas que não são
sucientes para satisfazer todos – trata-se do também conhecido problema do
common pool of assets, apontado por omas H. Jackson.1
Se o acesso aos bens comuns fosse coordenado ou organizado, a quantidade
ou o valor desses bens para os indivíduos poderia ser aumentado, o que impor-
taria em uma melhoria do bem-estar da coletividade de indivíduos. Mas se não
houver coordenação no acesso aos bens comuns, cientes de que não há bens para
satisfazer todos, os indivíduos iniciarão uma corrida pelos ativos, orientando “seu
1. JACKSON, omas H. e logic and limits of bankruptcy law. Washington: BeardBooks, 2001, p. 12-14.
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comportamento pelo ditado ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’”.2 Essa busca pela
satisfação individual pode destruir o valor dos bens comuns, consequentemente
reduzindo o bem-estar da coletividade de indivíduos – por isso a expressão “tra-
gédia dos comuns”.3
Essa corrida atrás dos bens da empresa em crise gera um problema de ação
coletiva (collective action), na medida em que leva à destruição do valor do conjunto
de ativos do devedor, em razão do incentivo individual para que credores, contra-
tantes e sócios “abandonem o barco”.4 Em vez de promover a venda dos ativos por
seu going concern,5 os credores buscam a satisfação individual de seus créditos a
partir da expropriação de bens especícos, individualmente considerados (ou pie-
cemeal), consequentemente apagando o valor decorrente da organização dos bens
de produção (o conhecido aviamento).6 As regras de direito concursal objetivam
a solução do problema de ação coletiva, de modo a maximizar o valor do conjunto
de ativos da empresa em favor dos interesses dos credores, contratantes e sócios.7
A Lei 11.101/2005 enfrenta esse problema de ação coletiva ao permitir que o
devedor se utilize da recuperação judicial para satisfazer a coletividade de credores,
ao viabilizar a propositura e a execução de um plano para o soerguimento da em-
presa. O objetivo do instituto é preservar a “empresa como organismo vivo, com o
que se preservaria a produção, mantendo-se os empregos e, com o giro empresarial
voltando à normalidade, propiciando-se o pagamento de todos os credores”.8 Como
contrapartida, sócios e administradores passam a se submeter à inuência direta
e relevante dos credores, os quais detêm o poder de aprovar ou rejeitar o plano de
recuperação proposto pelo devedor, por meio de deliberação tomada em assem-
bleia geral de credores. Não só isso, com a edição da Lei14.112/2020, os credores
passaram a ter a faculdade de apresentar plano de recuperação alternativo, sem a
necessidade de concordância do devedor com seus termos, desde que observados
os requisitos previstos no art. 56, §6º da Lei 11.101/2005.
2. CAVALLI, Cássio. Reexões para reforma da lei de recuperação de empresas. In: WAISBERG, Ivo;
RIBEIRO, José Horácio Halfeld Ribeiro (Coord.). Temas de direito da insolvência. São Paulo: IASP,
2017, p. 109.
3. A esse respeito, vale conferir: (i) CAVALLI, op. cit., p. 109; e (ii) SATIRO, Francisco. O “dinheiro novo”
como elemento de interpretação do conceito de “crédito existente” na recuperação judicial. In: WA-
ISBERG, Ivo; RIBEIRO, José Horácio Halfeld Ribeiro (Coord.). Temas de direito da insolvência. São
Paulo: IASP, 2017, p.267.
4. TRIANTIS, George G. Termination rights in bankruptcy: the story of Stephen Perlman v. Catapult En-
tertainment, Inc. In: RASMUSSEN, Robert K. (Coord.). Bankruptcy law stories. New York: Foundation
Press, 2007, p. 56.
5. Sobre a noção de going concern, vale conferir: JACKSON, op. cit., 2001, p. 14.
6. SATIRO, op. cit., p. 266.
7. Ibidem, p. 267. Conra-se também: TRIANTIS, op. cit., p. 56.
8. BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência. 15. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2021, p. 71.
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Portanto, é válido sustentar que a submissão de uma empresa ao processo
de recuperação judicial conduz à perda relativa de poder por parte dos sócios
e, simultaneamente, ao aumento de poder dos credores. Surge aí um “estado de
tensão” entre credores e sócios, em razão da natural disputa por espaços negociais,
que podem vir a determinar os meios de recuperação da empresa. De um lado, os
sócios pretendem reestruturar a empresa para receber dividendos e ver resguar-
dados seus direitos patrimoniais. De outro lado, os credores buscam maximizar
seu retorno e obter a satisfação dos seus créditos (ou até mesmo tomar o controle
da empresa). Tanto uns, como outros (na maior parte das vezes) desejam evitar
a falência, capaz de destruir valor para todos os stakeholders.
É exatamente nesse ambiente de embates e jogos de interesses que tanto
credores, como devedor, buscam gerar (ou, ao menos, resguardar) valor para
si durante o processo de reestruturação da empresa, com o propósito de evitar
a falência. Um dos objetivos do direito concursal é criar um ambiente propício
para essas negociações,9 um fórum no qual devedor e credores se reúnem para
decidir o futuro da empresa. Incentiva-se uma negociação coletiva, em vez de
negociações individuais, consequentemente reduzindo custos de transação.10 No
entanto, a negociação para a elaboração de um plano de recuperação pode levar
tempo, e, enquanto barganham e se digladiam, credores e devedores podem estar
“deixando dinheiro na mesa”.
Os percalços inerentes às negociações em prol da reestruturação da empresa
são exacerbados quando existem credores titulares de dívidas sujeitas e que conti-
nuam a buscar a sua satisfação fora do processo de recuperação judicial, em face
de administradores, sócios e outras empresas do mesmo grupo econômico. Isso
pode desviar o foco de atenção das pessoas (e.g., diretores, acionista controlador)
por trás do devedor para a sua proteção pessoal, bem como para evitar que seja
bem-sucedida a tentativa de satisfação de credores sujeitos fora dos termos do
plano de recuperação. Em vez de se concentrarem na disputa entre o devedor e
os credores sujeitos pela alocação dos ativos via plano de recuperação, os admi-
nistradores e o controlador acabam tendo que redirecionar seus esforços para
impedir que determinados credores trabalhistas, por exemplo, consigam a sua
satisfação individual em descompasso com a coletividade de credores inseridos
na mesma classe.
9. WAISBERG, Ivo. O necessário m dos credores não sujeitos à recuperação judicial. In: ELIAS, Luís
Vasco (Coord.). 10 anos da lei de recuperação de empresas e falências: reexões sobre a reestruturação
empresarial no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p.200.
10. Na denição de N. Gregory Mankiw, custos de transação são “the costs that parties incur in the process
of agreeing and following through on a bargain” (MANKIW, N. Gregory. Principles of microeconomics.
2 ed. [S. l.: s. n.], 2000, p. 214).

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