Prestação de serviço a terceiros antes e depois das Leis Ns. 13.429/2017 e 13.467/2017

AutorEstêvão Mallet
Páginas54-65

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(*) O autor agradece a amável e cuidadosa leitura que do texto fez José Pedro de Camargo Rodrigues de Souza, permitindo aprimorar a reflexão e evitar vários erros. Os que ainda permanecem são de exclusiva responsabilidade do autor e não lhe podem ser imputados.

Estêvão Mallet

Professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado.

1. Introdução

Antes do advento da Lei n. 13.429/2017, a jurisprudência trabalhista, embora admitisse a contratação de terceiros para a execução de atividade-meio (terceirização), considerava ilícita, de maneira genérica, essa contratação quando voltada ao desenvolvimento de atividade-fim. O ponto foi realçado pelo Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, no exame do Recurso Extraordinário de n. 713.211/MG, a repercussão geral da matéria1. Em verdade, pelo menos no âmbito da Justiça do Trabalho, o problema encontrava-se superado desde o advento da Súmula n. 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Com a revisão da antiga Súmula n. 256, trouxe-se à baila, pela primeira vez, a distinção entre atividade-fim e atividade-meio2. Os incisos I e III do primeiro verbete mencionado, especialmente o último, passaram a ser entendidos como proibitivos de terceirização de atividade-fim, ainda que os precedentes que lhes deram origem não tivessem esse significado3. A melhor prova disso está em paradigmático aresto da Subsecção 1 Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho. Em verdadeira interpretação autêntica da jurisprudência sumular4, a decisão deixa

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patente a abrangência da proibição de transferência de parte das atividades empresariais a terceiros. Embora o texto seja longo, deve ser transcrito de maneira integral, para não perder o que nele consta de mais importante, tendo-se em conta, como adverte a doutrina, que o sentido do precedente judicial “vada appreso no per quello che esso aveva all’epoca in cui fu pronunciato, ma per quello assunto attraverso le manipolazioni e le rinterpretazioni di cui è stato oggetto5:

Essa Súmula (331)... consagrou dois limites ou contrapesos essenciais para a admissão da extensão da terceirização a outros campos de atividade econômica.

O primeiro limite, e o mais importante, foi considerar que essa terceirização só seria admissível nas atividades-meio, e não nas atividades-fim da empresa tomadora dos serviços dos trabalhadores terceirizados. A terceirização somente se justificaria pela possibilidade de fornecimento de mão de obra especializada por interposta pessoa que significasse um ganho de produtividade e de qualidade técnica na prática dessas atividades de apoio ou de auxílio à atividade essencial de cada empresa. Ao se admitir apenas a terceirização no desenvolvimento das atividades-meio das empresas, estabeleceu-se um limite que se pretendeu fosse absoluto, pela simples constatação de que, se não se limitasse a terceirização apenas às atividades-meio e se fosse essa admitida para as atividades-fim, chegar-se-ia, em seu limite lógico, à possibilidade da existência de uma empresa sem empregados, que desenvolvesse todas as suas atividades apenas por meio de trabalhadores terceirizados. Ou seja, uma empresa que produzisse determinado bem, produziria esse bem sem nenhum empregado próprio e apenas por meio de trabalhadores terceirizados. Dessa forma, seria possível, por exemplo, a existência de um estabelecimento de ensino sem professores dele empregados ou de um empreendimento hospitalar sem médicos ou enfermeiros que não fossem terceirizados. Esse limite, então, foi colocado como limite lógico e jurídico absoluto. Não se admite terceirização de atividades-fim, a não ser em casos excepcionais, como por exemplo no trabalho temporário, em que a Lei n. 6.019/74 admite essa hipótese, mas limitada às estritas hipóteses previstas em seu artigo 2º (para atendimento de necessidade transitória de substituição do pessoal regular e permanente da tomadora dos serviços ou a acréscimo extraordinário de seus serviços) e ao prazo máximo, com relação a um mesmo empregado, de três meses (excepcionalmente prorrogáveis, nos termos do artigo 10 da mesma lei).” (TST – SDI 1, Proc. E-ED-RR n. RR – 2938-13.2010.5.12.0016, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, julg. em 08.11.2012)6

2. As alterações trazidas pela lei n 13.429/2017

Com o advento da Lei n. 13.429/2017, a discussão sobre a licitude, ou não, de terceirização de atividade-fim ganhou novos contornos. O problema, que parecia resolvido pela Súmula n. 331 do Tribunal Superior do Trabalho, ao menos enquanto não julgado o recurso extraordinário em que reconhecida a repercussão geral da matéria, voltou a suscitar intenso debate. Afinal, a nova legislação alterou o texto da Lei n. 6.019/1974, originalmente voltada à disciplina do trabalho temporário, para estabelecer os parâmetros da atividade a ser desenvolvida por empresa prestadora de serviço, o que até então não existia, ao menos não de forma sistemática e abrangente7. E, naquilo que interessa ao problema sob exame, o fez nos seguintes termos:

Art. 4º-A. Empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos.

§ 1º A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços.

§ 2º Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante.

A previsão legal, menos clara do que o desejável em um assunto tão importante e delicado, permitia afirmar a existência, no novo diploma, de autorização alargada para contratação de prestação de serviço, mesmo daqueles ligados à atividade-fim do contratante. O limite posto era que o contrato tivesse por objeto “serviços determinados e específicos”. O que a norma proibia, portanto, era apenas a contratação de serviços genéricos, não delimitados, ou seja, não especificados no próprio contrato. Satisfeito o requisito da determinação e especificação, o contrato poderia envolver qualquer atividade, meio ou fim.

Mais importante, contudo, é o que se extrai a partir da aplicação da chamada mischief rule of construction, com tanta frequência invocada nos sistemas jurídicos da common law e que corresponde, em boa medida, à ideia de occasio legis, ou seja, o circunstancialismo que rodeou o aparecimento da lei8. Em um célebre caso decidido pela então House of Lords – hoje Supreme Court – solucionou-se dificuldade na interpretação de dispositivo do Abortion Act de 1967 tendo em conta, exatamente, o problema que o legislador procurou enfrentar com a edição da norma. Lord Diplock registrou no pronunciamento: “Whatever may be the technical imperfections of its draftsmanship, however, its purpose in my view becomes clear if

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one starts by considering what was the state of the law relating to abortion before the passing of the Act, what was the mischief that required amendment, and in what respects was the existing law unclear”9. Em outro julgamento, discutiu-se se o Street Offences Act de 1959, que considera crime “to loiter or solicit in a street or public place for the purpose of prostitution10,

haveria de aplicar-se ao agente que praticasse o comportamento não na rua ou em um lugar público (“a street or public place”), mas em um balcão ou uma janela aberta para a rua. Lord Parker baseou sua decisão nas seguintes considerações: “For my part, I approach the matter by considering what is the mischief aimed at by this Act. Everybody knows that this was an Act intended to clean up the streets, to enable people to walk along the streets without being molested or solicited by common prostitutes. Viewed in that way, it can matter little whether the prostitute is soliciting while in the street or is standing in a doorway or on a balcony, or at a window, or whether the window is shut or open or half open; in each case her solicitation is projected to and addressed to somebody walking in the street. For my part, I am content to base my decision on that ground and that ground alone11. Não se deve perder de vista que em causa estava a interpretação de norma penal e a solução adotada fez prevalecer sentido mais amplo para a previsão.

Pois bem, no caso da Lei n. 13.429/2017, não há dú-vida de que, com a nova redação dada à Lei n. 6.019/1974, teve o legislador o propósito manifesto de alterar o cenário até então dominante. Em outros termos, legislou-se para afastar a solução da Súmula n. 331, não para a manter ou referendá-la. Tanto é verdade que o Projeto de que resultou a Lei n. 13.429/2017 continha, de início, expressa proibição de terceirização de atividade-fim no contrato de prestação de serviço, nos termos da jurisprudência sumulada. No texto original do PL n. 4.302 a regra que veio a transformar-se no art. 4º-A, caput, apresentava a seguinte redação:

Art. 19. Considera-se empresa de prestação de serviços a terceiros a pessoa jurídica de direito privado legalmente constituída, que se destina a prestar determinado e específico serviço para outra empresa, fora do âmbito das atividades-fim e normais da tomadora de serviços.

Na redação aprovada, porém, excluiu-se a parte final do dispositivo, para abandonar-se a limitação à contratação de serviços no “âmbito das atividades-fim e normais da toma-dora”. A mudança revela a finalidade da previsão e permite melhor compreender o seu sentido12, consoante o dito que se encontra em decisão dos tribunais norte-americanos: “the legislative...

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